
O montes-clarense Flávio Muniz acaba de lançar o livro “O Diário de Um Navegante na Covid – 19” (Editora Telha), tendo como coautores a pedagoga Áurea Muniz e o jornalista Gustavo Medrado – eles que escreveram durante o período de internação do autor.
Publicá-lo, segundo Muniz, tem sentido histórico peculiar: trata-se de um livro que jamais desejou escrever, mas que tem o dever moral de publicar.
O autor nasceu e viveu infância e juventude em MOC, boa parte nos bairros Alto São João e Renascença. Segundo filho de outros cinco de dona Mara Lúcia e Antônio, mais conhecido como o artista e saudoso “Chita do Pandeiro”, estudou os primeiros anos na Escola Antônio Figueira e na adolescência na Escola Eloy Pereira.
Muniz conta que, certo dia, dona Vera Lúcia Pinto, sua antiga professora do primário, o pediu para fazer uma pesquisa e falou da Biblioteca Municipal.
“Me deparei com a porta aberta. Subi os degraus e, quando cheguei ao guarda volumes, uma senhora com o olhar gentil me recebeu. Conforme seguia, o vento que entrava pelas enormes janelas de vidro ressaltava aquele aroma de conhecimento, iluminado pelo silêncio que era quase o ambiente sacro de uma catedral. Desde o princípio, me pareceu um lugar sagrado, não pela institucionalidade, mas pela natureza de fiel depositária de tantos saberes ancestrais guardados”, lembra.
Foi lá que Flávio descobriu mais que o prazer, o privilégio de ler. Era final da agitada década de 1980, mas lá era um cantinho de paz. Depois de pegar emprestado um livro e depois outro, sentava sob a sombra das árvores e deixava a imaginação flutuar para além da realidade de um menino negro, trabalhador e pobre.
Você começou a trabalhar aos sete anos...
Sim, o trabalho infantil era uma dura realidade na Montes Claros do século passado. Trabalhei como auxiliar de oficina mecânica, engraxei sapatos para senhores e madames, alguns me davam um troco extra pelo samba que fazia com as flanelas e escovas enquanto engraxava. Também fui vendedor ambulante de jornais, do antigo Diário de Montes Claros. Fui office-boy na antiga Corp Consultoria e Projetos do saudoso dr. José Carlos e do dr. Geraldo Guedes, que na época tinha uma secretária que se chamava Marlene Gomes, que muito me incentivava a estudar. Quando cheguei aos 15 anos, decidi estudar enfermagem na Escola Técnica de Saúde e, simultaneamente, estudava Teologia no Seminário Batista do Norte de Minas, também um dos lugares onde grandes mestres me inspiraram nos estudos, no caminho da fé e na leitura e interpretação dos sagrados escritos. Lá aprendi a escrever sermões, sistematizar minhas ideias e, desenvolvê-las.
Você foi orador da formatura em enfermagem e escreveu o discurso, que recebeu elogios de muitos professores.
Sim, do meu professor de psicologia, dr. Jonas Anselmo, e do então vice-reitor da Unimontes, Geraldo Magalhães Zuba, o Padre Zuba. Com minha nova formação em enfermagem consegui meu primeiro emprego no Hospital Prontomente, onde vivi experiências existenciais profundas sobre a trágica realidade da saúde mental na sociedade brasileira.
Nos anos 90, se mudou para Uberlândia, onde vive até hoje, onde leciona História da África.
Trabalhar com processos criminais de escravizados me abriu os olhos para a compreensão das relações dos cidadãos comuns e os ordenamentos jurídicos brasileiros e resolvi entrar em uma nova graduação em Direito, que neste ano de 2023 estou concluindo. Atualmente sou Professor de História da África em um curso online, também leciono em cursos preparatórios para vestibular e Enem e coordeno uma ONG na periferia da cidade, que cuida de adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social.
“O Diário de Um Navegante na Covid – 19” é seu primeiro livro?
Apesar de já ter escrito capítulos em livros científicos e artigos para jornais, o livro “O Diário de Um Navegante na Covid – 19” é meu primeiro livro publicado, mas não meu primeiro livro escrito. E publica-lo tem um sentido histórico peculiar. Ele é um livro que jamais desejei escrever, mas que tenho o dever moral de publicar. Explico o por quê. Descobri que havia contraído Covid em 30 de janeiro de 2021 e, a partir desse dia, comecei a registrar diariamente os caminhos do tratamento. A princípio, a intenção era contribuir com informações seguras sobre o tratamento, pois jamais imaginei que poderia desenvolver a forma grave da doença, visto que nunca fui fumante ou sequer tinha comorbidades, além de praticar atividades físicas. Mas aconteceu.
Você registrou, na medida do possível, um diário virtual em uma rede social. Como foi o processo?
Desenvolvi a forma grave e foi necessário ser internado no dia 8 de fevereiro de 2021, no hospital montado na urgência da pandemia na cidade de Uberlândia. Em dois dias, minha situação se agravou, precisei ser entubado e fiquei em estado gravíssimo. Naquele hospital não tinha UTI, mas, depois de muita luta, conseguiram me transferir para a UTI do Hospital Santa Catarina, onde permaneci em estado gravíssimo. Em alguns momentos, os médicos não tinham esperança de minha recuperação, porém minha situação repentinamente mudou. No dia 27 fui extubado e tive alta em 9 de março de 2021. Voltei, mas nunca mais seria o mesmo. Nem no corpo, nem na mente.
Quando a viagem parecia ter terminado, seu filho primogênito, foi contaminado.
Infelizmente meu filho faleceu 33 dias depois. Este livro trata sobre uma viagem inesperada, sobre dor, sobre esperança, sobre luta, sobre a vida. Este livro fala da minha luta e do meu filho para sobreviver num país devastado pelo negacionismo, pela falta de controle sanitário, pelas necropolíticas que levaram mais de meio milhão de pessoas à morte. O que é sepultar o filho primogênito com apenas 24 anos, vítima da Covid? Ninguém me disse, eu vivi.
Foi extremamente doloroso escrever este diário não é?
Ele não foi desejado, mas esta história não pode ser ignorada. Há dias de profunda revolta e outros de uma névoa de esperança. Costumo dizer que este livro não foi escrito, foi parido. O que trouxe para o livro “O Diário de um Navegante na Covid 19” não sou eu, mas fragmentos de minha existência. Pedaços sombrios ou iluminados de minhas experiências de um navegante na covid 19, no ano de 2021. O livro foi lançado em dezembro em Uberlândia e pretendo lança-lo em minha cidade, Montes Claros, ainda neste semestre.
Serviço
Livro: “O Diário de um Navegante na Covid-19” – Professor Flávio Muniz
Vendas: site flaviomuniz.pro.br
Lançamento, em breve, em Montes Claros