Logotipo O Norte
Sexta-Feira,20 de Setembro

Zina, o pão preto que nos serena

Jornal O Norte
11/11/2009 às 08:39.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:16

Yago Cavalcante


 


Consolidou-se um costume. Sempre quando chego em casa, por volta do meio-dia, minhas células digestivas e nervosas se desentendem. Enquanto aquelas me convidam a ir à cozinha e a degustar mais um apetitoso almoço preparado pelas habilidosas mãos de D. Marli; estas, por sua vez, imploram para que eu permaneça frente ao computador, atualizando-me sobre os infinitos acontecimentos mundo afora, referentes ao curto período da manhã. Sem cerimônia, obedeço aos meus efusivos neurônios. Estar quite com a realidade é sempre muito proveitoso; propicia-me a continuar redigindo artigos, livra-me de induções pragmáticas, sobretudo, as de caráter político e instiga-me o senso crítico, impedindo que eu cultive ídolos errados, como boa parte dos brasileiros.

Isso mesmo! Cultivar ídolos desmerecedores de qualquer reverência ou veneração tem se tornado nossa peculiaridade. No início da semana passada, enquanto me dedicava aos anseios de minhas células nervosas, deparei-me com a notícia de que a mais nova vedete da Rede TV!, o Zina, havia sido detida pela polícia por portar uma cápsula com cocaína na zona norte paulistana. Zina angariou milhares de fãs com seu modo moribundo de conversar, que aparenta retardamento mental, e pela autoria dos enfadonhos bordões “Ronaldo” e “Ronaldo brilha muito no Corinthians”. Ele nos remete à política assistencialista do Pão e Circo, empreendida pelos governantes romanos a fim de hipnotizar a população antiga e evitar possíveis revoltas plebeias. Hoje, essa política foi terceirizada, é de responsabilidade da iniciativa privada, das emissoras televisivas. Ao passo em que representamos a massa popular, faminta e desprovida sensos crítico e cultural, Zina retrata o pão preto e o espetáculo podre que nos serenam.

Enfim, após ler a reportagem, confesso que, a priori, senti-me confortado. Ficaria um bom tempo sem ouvir aquelas expressões molestas. O alívio foi fugaz. No dia seguinte, para minha surpresa, o programa de TV publicou em nota que certamente não demitiria a vedete. Afinal, mais importante que não banalizar o uso de drogas para a classe adolescente telespectadora é manter os sucessivos picos de audiência dominicais em decorrência de Marcos Herédia, o Zina. Dependentes químicos não carecem de exposição pública, de sensacionalismo. Precisam de acompanhamento médico.

A fim de dissimular tal contra-senso, o programa, no último domingo, propôs-se a organizar uma espécie de palestra anti-drogas na comunidade em que o ímã de audiência reside. Como ainda não tenho filhos, deixei a TV ligada no canal, não por interesse didático, mas humorístico. Pura prolixidade.

Mas o mais surpreendente é termos conseguido chegar ao ponto em que um indivíduo que, por se pronunciar comicamente, cativa massas de fãs; por outro lado, um artista, de fato, engajado em causas culturais e sociais nem sempre recebe o merecido valor, de modo que o resultados de seu trabalho fiquem estancado em prateleiras empoeiradas.

Tudo isso é reflexo de um sistema educacional falho que, mesmo nas circunstâncias ditas eficientes e proveitosas, ainda se restringe à metodologia “conteudista” e à “decoreba”, em detrimento da fomentação de um senso crítico nos jovens. É reflexo de uma televisão desregrada, alheada das questões sociais e que submete órgãos supervisores aos seus interesses. É reflexo de um governo que banaliza a infração e a desordem e não dispensa a devida atenção aos aspectos culturais. É reflexo de uma sociedade ignara e obrigada a se ater unicamente à saciedade de suas células digestivas.

Compartilhar
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por