Zé Rubem

Jornal O Norte
Publicado em 22/01/2009 às 11:10.Atualizado em 15/11/2021 às 06:50.

Marcelo Braga


Escritor


mqbraga@hotmail.com



Rubem Fonseca é um de meus heróis.



Sempre achei geniais as coisas que cria: cenários, personagens, diálogos, situações.



Com sua literatura revolucionária, quase sempre enterra o dedo em feridas supuradas.



É preciso fôlego para se enveredar por suas páginas ficcionais.



Com essa crônica, não tenciono analisar sua obra. Já tenho dado passos bem maiores que minhas pernas ao eleger 2009 como um ano de desafios. E me arriscar em uma partida ou outra de tênis ou futebol é uma coisa. Bancar o crítico literário é outra. Sou fã de Rubem Fonseca, não de ouriços…



Mas jogar um pouco de confete não faz mal a ninguém. Ainda mais em véspera de carnaval. Ainda mais numa pessoa que acabo de eleger como um de meus poucos heróis.



O problema dos heróis é sua força, sua distância. Sua intangibilidade. E ainda quero poder chamá-lo “Zé Rubem”, como o fazem os amigos.



Preciso correr!



Então…



Em meados de 1927, fui bilheteiro num cinema de Juiz de Fora. Nessa época, apaixonei-me por uma moça sorridente e sonhadora, que trabalhava como babá. Certa tarde, surpreendeu-me ver aquele carrinho de bebê se aproximando da bilheteria. Quando a conheci, não havia tal apêndice. Mas, completamente enfeitiçado, fingi que não vi. E logo arrumei um lugarzinho para que pudéssemos namorar sossegados. Torci para que a criança não ensaiasse um choro delator. Foi um alívio tremendo constatar a fascinação que brilhava nos olhos do pequeno, diante dos movimentos projetados naquela sala escura. Lembro que comentei que o menino certamente se tornaria um amante do cinema. Mas, infelizmente, nunca mais soube dele. O namoro interrompeu-se. E prefiro não falar mais sobre isso…



Na década de 50, vivi na pele de um cidadão estadunidense. Trabalhava no Hotel Albert, ou The Albert, como preferiam alguns. Era meu dever registrar todos os hóspedes que chegassem. Da mesma forma, cabia-me aspirar a tapeçaria esburacada, carregar toda a bagagem por aqueles degraus intermináveis, lustrar os corrimões de metal e mais uma dúzia de tarefas nada nobres. Que, atualmente, quase sempre são desempenhadas pelos deslumbrados “intercambistas”, que acham a última maravilha cruzar milhares de milhas para limpar a sujeira produzida nos países desenvolvidos. Em seus lares ainda em desenvolvimento, sequer separam o lixo reciclável! Mas… Como ia dizendo, foi no meu turno que se deu o registro do senhor José Rubem Fonseca, um brasileiro que chegou ao Albert em setembro de 1953. Passei a ele a chave de um quarto enorme, cujas luzes fracas sempre me davam a sensação de que Nova Iorque pudesse cochilar. O que me chamou a atenção naquele homem de 28 anos inimagináveis era sua curiosidade por Thomas Wolfe, escritor que se hospedara conosco numa época longínqua. Não pude deixar de sorrir, quando escutei as pilhérias de Stuart, um porteiro brincalhão e tagarela, que, com sua cabeleira branca ofuscante, parecia mais velho que o tempo. Stuart enchia a boca para dizer ao senhor Fonseca que chegara a ver Wolfe trabalhando; escrevendo, rasgando papéis, tornando a escrever… “Escritores são gente doida!”. E foi difícil verificar quem enganava quem, pois os olhos espertos do senhor Fonseca não refulgiam nem uma pontinha de credulidade diante do testemunho obstinado de Stuart: “Garanto ao jovem que tem a sorte de estar ocupando o mesmo quarto em que residiu o senhor Wolfe!”. Nunca cheguei a conversar com o senhor Fonseca, mas fiquei com a impressão de que éramos almas parecidas. Principalmente devido à insônia que rotineiramente o alcançava no quarto escuro. Muito afável e educado em seu grosso e indefectível sobretudo preto, não se esquecia de acenar pouco antes de deixar o lobby do hotel, madrugada adentro. Acostumado a não me apegar a nada nem a ninguém, senti apenas uma leve contrariedade, quando vi que o nome daquele hóspede já não figurava mais em nosso rol. Nosso convívio durou pouco menos de um mês. Mas aprendi com ele como tratar uma boa insônia!



Confesso que já estava um pouco cansado quando aquele homem entrou na cabine. Já fazia horas que eu estava ali, detrás da divisória escura de vidro. Torcia para que logo aparecesse alguém para me render. Maldita hora em que havia escolhido um trabalho interno! Por mais severo que fosse o frio naquele inverno alemão, qualquer patrulha seria mais agradável que aquele maçante escrutínio. Chegava a ter pesadelos com a fila interminável de velhotes querendo cruzar a fronteira entre a Berlim Ocidental e a Oriental. Talvez ele tenha me chamado a atenção pela diferente compleição física. Absolutamente, não era um dos nossos. Mas também não tinha cara de contrabandista. Mais um turista à toa! Nunca havia entendido por que existia gente que cismava de fazer turismo na banda oriental da cidade. Pensando melhor, pode ter sido pela maneira como aquele sobretudo escuro envolvia seu corpo. Uma sensação angustiante de déjà-vu percorreu-me, o que me ajudou a manter o foco. Com o tom mais firme que consegui, pedi para ver seu


passaporte. A luz forte que incidia em seu rosto causava um incômodo contagiante. Soltei mais uma ordem, num alemão entediado. Silêncio. Repeti em inglês, antes de tomar uma atitude mais enérgica: “Erga a cabeça!”. Era um semblante sereno, apesar de sério e compenetrado. Não tive certeza de que o homem estava limpo. Mas isso tampouco me importava. Queria somente que os ponteiros corressem mais dez minutos. Despachei logo o tal José Rubem Fonseca. Contudo, a sensação de já ter visto aquele indivíduo me acompanhou por vários dias.



Pouco antes de receber o telegrama que foi o real mote para este artigo, bolei uma forma de me aproximar de Rubem Fonseca. Lendo a respeito de seu “Quarto dos Macacos”, uma curiosidade pirracenta me envolveu. Como seria esse cômodo? O que guardaria? Foi quando idealizei a promoção EXPEDIÇÃO AO “QUARTO DOS MACACOS”, DE RUBEM FONSECA. Sabia que seria um golpe duríssimo em meu herói, um dos mais notórios amantes do anonimato. Mas a intenção era que o único e feliz vencedor da promoção fosse eu. Ninguém mais. Não haveria problema, portanto; pois, de uma forma ou de outra, nossos destinos sempre estiveram se comunicando. Tornar-me seu amigo era inevitável. Questão de tempo! Pois bem… Criei as letras miúdas que regulamentam toda promoção que se preze. Em negrito, a condição sine qua non de o passeio não poder durar mais de vinte minutos. Exceto se houvesse determinação por escrito do próprio Rubem, a quem caberia cronometrar o tempo excedente. Ponto alto da visita seria a fotografia instantânea (câmeras digitais não seriam permitidas) do vazio deixado pela caixa que guardava todas as bulas dos remédios que o escritor consumia. Com a legenda: “Em matéria de leitura eu sou onívoro, ou polífago, se preferem. (…) Mas as duas leituras que prefiro são poesia e bula de remédio. (…) aquele acervo fantástico de mais de mil bulas desapareceu, para meu profundo desgosto. (O Romance Morreu, p. 27 e 28)”. Infelizmente, por motivos técnicos, não tive como viabilizar a promoção… E meu sonho de amizade foi adiado por tempo indeterminado.



Até o dia em que liguei pra Belo Horizonte, para ter notícia de minha família. “Chegou um telegrama pra você…”. A frase foi dita assim, como uma notícia qualquer. Não dei muita importância, mas aquiesci, quando quiseram saber se o podiam abrir. Peço licença ao remetente para transcrever o conteúdo da correspondência (um curioso é avesso a segredos…): “Meu caro Marcelo Queiroz Braga,/Devido à greve dos Correios, somente agora posso agradecer o envio do seu livro “GRÃO”, com a sua amável dedicatória. Um forte abraço, Rubem Fonseca”.



Zé Rubem, olha só, não precisa mais dessa coisa de “Marcelo Queiroz Braga”! Fica à vontade pra me chamar só de “Marcelo”. Faço questão! E repito que a coisa da promoção não foi pra frente. Não precisa se preocupar! Agora… um cafezinho não seria mal entre amigos. Poderíamos até fumar um Pimentel juntos. Se sua empregada fixa não se incomodar, logicamente!

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