Eduardo Lima
Na porta da venda havia um tronco e Zé Dilúvio sentava ali. Usava um canivete e cofiava cigarros de palha, com minúcias e, em falando pouco, quando abria a boca dizia muito. Vaticinava que velho naquelas bandas só morria de três "cês": coice, queda e caganeira. Mas se desafinava no português, Zé Dilúvio era um relógio, parceiro do tempo, uma antena do mundo. Sabia de todas as chuvas, conhecia zumbido de abelha, relincho de cavalo bravo, cio de égua, voz de cerrado, a tudo Zé entendia, como se houvesse uma linguagem sua com a vida fora de si.
Eu o vi muitas vezes, no rumo das terras de um tio que passava horas viajando na nave de Zé Dilúvio. Muitos na roça o chamavam Zé de Luvo. Zé morreu e poucos se lembram dele e não há mais a venda na estrada, não há mais a estrada nem o toco em que Zé desfiava seu "paioso" e suas predições. Nem o riacho que conversava com Zé existe mais.
Os homens que chegaram destruíram tudo e fizeram um canal de cimento, no rumo de um rio quase nada, mudaram paisagem e a relação com as coisas, até o tempo, parceiro de Zé Dilúvio, fazendo dele algo que pertence e se é capaz de desfazer. Muniram-se de um relógio e só.
Desaprenderam a ler luz. Não conseguiram mais ouvir nascer de sol e foram cavando os rios e derrubando barrancas. E foram matando peixes meninos e outros peixes não nascem mais. Mataram até peixinhas grávidas.
- O pensar científico não conheceu
Zé Dilúvio já que Zé Dilúvio
nunca foi uma equação...
Subiram nas árvores e derrubaram ninhos. E tanto fizeram aos brotos d'água, que tudo secou e o chão se encheu de rugas. Assim fizeram aos morros baixos e aos morros altos. Assim fizeram às samambaiais e às estações de trem - devoraram a vida.
Quando então tudo avisou, quando as árvores se calaram de frutos, os rios se calaram de peixes, as nuvens se calaram de chuvas, as águas se deram à turbina, resolveram mudar o tempo decretando que o relógio seria mudado, pois mudando relógio, presumiram, muda-se a vida. Tudo vai funcionar, cientificamente.
O pensar científico não conheceu Zé Dilúvio já que Zé Dilúvio nunca foi uma equação. Zé Dilúvio vivia da essência, da exalação e a ciência não conhece a essência de nada. Essência é a alma e para a ciência alma é vácuo, não existe; não tem fórmula. Assim, com o tolo intuito de mudar, os cientistas inventaram o tal horário de verão, que economizou 0,6% de eletricidade em quatro meses. Como se ao mudar o relógio fosse possível mudar uma flor ou a lógica lerda da lesma.
Mudar o relógio não muda a vida - a vida vem do ilógico, do regulado sem tempo, da rotina do sol e do cantar do galo. Se Zé Dilúvio fosse ainda dessa dimensão ficaria indiferente e sua vida intacta. Para Zé Dilúvio o tempo quem marcava era a cor do dia, a rota das aves, a umidade do vento, o sorriso da lua. Passado tanto tempo de sua morte o homem piorou. E, por presunção, muda as horas no relógio e acredita que está mudando a vida.