Vicente

Jornal O Norte
Publicado em 13/03/2010 às 15:26.Atualizado em 15/11/2021 às 06:23.

Felippe Prates



 -  De onde fala?



 -  Com quem gostaria de falar?



 -  Com minha irmã, Cremilda.



 -  É engano, minha senhora.  Aqui não tem ninguém com esse nome.



 -  Desculpe.



Dois minutos depois:



 -  Por favor, é da casa da Cremilda?  Eu queria falar com ela.



 -  Minha senhora, é um engano.  Vou tentar ajudá-la: qual foi o número que a senhora ligou?



O número estava correto.



 -  Olha: a senhora deve ter trocado algum algarismo.  Verifique.



 -  Já verifiquei.  Eu ligo este número várias vezes por dia.  Minha irmã está muito doente.  Já não se levanta mais da cama.



A conversa se prolongou por algum tempo.  Tentamos convencer a senhora que nos falava, pela voz já bastante idosa, do seu engano, do número trocado, mas, sem sucesso.



 -  Sabe, já está ficando tarde.  Desisto, por hoje.  Amanhã tento de novo.  Como é o seu nome?



 -  Felippe.  E o seu?



 -  Helena.  Muito obrigada, Felippe, pela sua paciência e a sua gentileza comigo.  Você é um amor! Quantos anos você tem?



 -  74.



 -  Um rapazinho!  Sua voz é muito forte para quem tem 74 anos.  Não parece.  Noto que você, Felippe, é um cavalheiro e, naturalmente, não vai perguntar qual é a minha idade, né?  Mas é fácil descobrir: basta saber em que ano eu nasci.  Pergunte e lhe direi.



 -  Está bem, dona Helena.  Em que ano a senhora nasceu?



 -  Esqueci!



Rimos muito, a conversa era muito agradável, pois dona Helena, chegada a uma gozação, antenada e bem informada, tinha opinião pessoal sobre todos os assuntos.



 -  Enquanto isso vamos conversando, conversando, passando o tempo, não é, Felippe? Olha: diga à sua esposa para não sentir ciúmes de mim não, ‘viu?  Tenho 88 anos...



 -  Alô!



 -  Pronto!



 -  Vicente?



 -  Não, não é o Vicente.  Aqui não tem nenhum Vicente.



 -  Ô Vicente!  Pensa que eu não conheço sua voz?!  Chame sua mãe aí!



 -  Quem me dera!  Minha mãe está no Céu, partiu há tanto tempo, nos deixando mortos de saudades...



 -  Você não tem mais o que fazer não, menino?  Pára de brincadeira, siô!  Chame sua mãe, pois preciso falar com minha irmã, Vicente!



 -  Mas, minha senhora...



O mesmo telefonema se repetiu inúmeras outras vezes, por várias semanas, quase com o mesmo diálogo, em busca de imaginários Vicente e sua mãe, para nós inteiramente desconhecidos.  Mas, a tia do Vicente, mesmo algumas vezes bastante malcriada, já nos despertava simpatia e, sem que disso desconfiássemos, passou a fazer parte do nosso conhecimento.  Até que, certa vez, nos ligou às 3 horas da madrugada.  O susto foi enorme, pois telefonema a essa hora nunca transmite notícia boa.  Atendemos, sobressaltados, mas, antes, mentalmente, demos um rápido balanço dos doentes da família.  Qual deles?



 -  Vicente?



Em nosso celular se encontrava gravado o número do telefone pertubador.  Por curiosidade, no dia seguinte, um sábado, ligamos e nos atendeu uma voz masculina, amável, atenciosa, que nos ouviu e nos disse:



 -  O senhor me perdoe!  É minha avó, ela já passou dos 80 mas, muito vaidosa, se recusa a usar óculos e digita os números errados.  Vou tomar imediatas providências, vou falar com ela e isso, certamente, não voltará a acontecer! Mil perdões!



Nesse instante nos demos conta do absurdo que tinhamos cometido!  Se arrependimento matasse, ali mesmo estariamos estatelados no chão, mortíssimos!  A tia do Vicente, já nossa amiga, naturalmente e com toda razão iria ficar magoada conosco.  Que horror, meu Deus!  Talvez nunca mais voltasse a nos telefonar, o que seria um tranco terrível no nosso patrimônio afetivo!  Logo ela, tão diferente, enérgica e divertida!  Afinal, ligação telefônica errada nunca fez mal a ninguém!  Nunca fez!  Reagimos com firmeza, muita aflição e pedimos:



 -  Não, pelo amor de Deus, não faça isso, não fale nada com ela!  O engano foi nosso!  Não desejamos que ela sinta a menor mágoa!  Deixa ficar!  Nos tornamos amigos e é preciso preservar essa amizade, coisa tão difícil hoje em dia!... E o senhor quer saber de uma coisa: se ela voltar a ligar de madrugada, não tem a menor importância!  A gente atende, esclarece e volta a dormir de novo...  Mesmo que nada!  O senhor nos promete que não falará absolutamente nada com ela?  Promete?



Do outro lado da linha, uma voz ausente do nosso sufoco, perplexa, respondeu:



 -  Prometo!



Isabella, tão jovem e tão brilhante, a querida filha caçula deste autor, informada colocou uma observação pertinente, mas muito triste, amarga:



 - Isso é solidão. O velho não tem plateia, nada lhe acontece de novo, conta sempre as mesmas histórias.  Essa senhora, por falta de gente com quem conversar, valendo-se de um engano, na certa criou tudo isso, Papai.



Pois agora, ambas , as nossas amigas, já têm quem lhes dê atenção.  Podem contar conosco, para ouví-las, perguntar, interessar, nos curtirmos, conversarmos até de madrugada, a hora que for...



A propósito: qual será o nome da tia do Vicente?



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