Felippe Prates
- De onde fala?
- Com quem gostaria de falar?
- Com minha irmã, Cremilda.
- É engano, minha senhora. Aqui não tem ninguém com esse nome.
- Desculpe.
Dois minutos depois:
- Por favor, é da casa da Cremilda? Eu queria falar com ela.
- Minha senhora, é um engano. Vou tentar ajudá-la: qual foi o número que a senhora ligou?
O número estava correto.
- Olha: a senhora deve ter trocado algum algarismo. Verifique.
- Já verifiquei. Eu ligo este número várias vezes por dia. Minha irmã está muito doente. Já não se levanta mais da cama.
A conversa se prolongou por algum tempo. Tentamos convencer a senhora que nos falava, pela voz já bastante idosa, do seu engano, do número trocado, mas, sem sucesso.
- Sabe, já está ficando tarde. Desisto, por hoje. Amanhã tento de novo. Como é o seu nome?
- Felippe. E o seu?
- Helena. Muito obrigada, Felippe, pela sua paciência e a sua gentileza comigo. Você é um amor! Quantos anos você tem?
- 74.
- Um rapazinho! Sua voz é muito forte para quem tem 74 anos. Não parece. Noto que você, Felippe, é um cavalheiro e, naturalmente, não vai perguntar qual é a minha idade, né? Mas é fácil descobrir: basta saber em que ano eu nasci. Pergunte e lhe direi.
- Está bem, dona Helena. Em que ano a senhora nasceu?
- Esqueci!
Rimos muito, a conversa era muito agradável, pois dona Helena, chegada a uma gozação, antenada e bem informada, tinha opinião pessoal sobre todos os assuntos.
- Enquanto isso vamos conversando, conversando, passando o tempo, não é, Felippe? Olha: diga à sua esposa para não sentir ciúmes de mim não, ‘viu? Tenho 88 anos...
- Alô!
- Pronto!
- Vicente?
- Não, não é o Vicente. Aqui não tem nenhum Vicente.
- Ô Vicente! Pensa que eu não conheço sua voz?! Chame sua mãe aí!
- Quem me dera! Minha mãe está no Céu, partiu há tanto tempo, nos deixando mortos de saudades...
- Você não tem mais o que fazer não, menino? Pára de brincadeira, siô! Chame sua mãe, pois preciso falar com minha irmã, Vicente!
- Mas, minha senhora...
O mesmo telefonema se repetiu inúmeras outras vezes, por várias semanas, quase com o mesmo diálogo, em busca de imaginários Vicente e sua mãe, para nós inteiramente desconhecidos. Mas, a tia do Vicente, mesmo algumas vezes bastante malcriada, já nos despertava simpatia e, sem que disso desconfiássemos, passou a fazer parte do nosso conhecimento. Até que, certa vez, nos ligou às 3 horas da madrugada. O susto foi enorme, pois telefonema a essa hora nunca transmite notícia boa. Atendemos, sobressaltados, mas, antes, mentalmente, demos um rápido balanço dos doentes da família. Qual deles?
- Vicente?
Em nosso celular se encontrava gravado o número do telefone pertubador. Por curiosidade, no dia seguinte, um sábado, ligamos e nos atendeu uma voz masculina, amável, atenciosa, que nos ouviu e nos disse:
- O senhor me perdoe! É minha avó, ela já passou dos 80 mas, muito vaidosa, se recusa a usar óculos e digita os números errados. Vou tomar imediatas providências, vou falar com ela e isso, certamente, não voltará a acontecer! Mil perdões!
Nesse instante nos demos conta do absurdo que tinhamos cometido! Se arrependimento matasse, ali mesmo estariamos estatelados no chão, mortíssimos! A tia do Vicente, já nossa amiga, naturalmente e com toda razão iria ficar magoada conosco. Que horror, meu Deus! Talvez nunca mais voltasse a nos telefonar, o que seria um tranco terrível no nosso patrimônio afetivo! Logo ela, tão diferente, enérgica e divertida! Afinal, ligação telefônica errada nunca fez mal a ninguém! Nunca fez! Reagimos com firmeza, muita aflição e pedimos:
- Não, pelo amor de Deus, não faça isso, não fale nada com ela! O engano foi nosso! Não desejamos que ela sinta a menor mágoa! Deixa ficar! Nos tornamos amigos e é preciso preservar essa amizade, coisa tão difícil hoje em dia!... E o senhor quer saber de uma coisa: se ela voltar a ligar de madrugada, não tem a menor importância! A gente atende, esclarece e volta a dormir de novo... Mesmo que nada! O senhor nos promete que não falará absolutamente nada com ela? Promete?
Do outro lado da linha, uma voz ausente do nosso sufoco, perplexa, respondeu:
- Prometo!
Isabella, tão jovem e tão brilhante, a querida filha caçula deste autor, informada colocou uma observação pertinente, mas muito triste, amarga:
- Isso é solidão. O velho não tem plateia, nada lhe acontece de novo, conta sempre as mesmas histórias. Essa senhora, por falta de gente com quem conversar, valendo-se de um engano, na certa criou tudo isso, Papai.
Pois agora, ambas , as nossas amigas, já têm quem lhes dê atenção. Podem contar conosco, para ouví-las, perguntar, interessar, nos curtirmos, conversarmos até de madrugada, a hora que for...
A propósito: qual será o nome da tia do Vicente?
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