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Sábado,8 de Fevereiro

Vazio material

Jornal O Norte
Publicado em 09/04/2010 às 12:05.Atualizado em 15/11/2021 às 06:25.

Mara Narciso


Médica e acadêmica do curso de Jornalismo da Funorte 



O domingo estava tão sonolento que demorou mais de 48 horas para ir de seis da manhã até as 16 horas. A casa enorme, ocupada apenas por mim, mostrava como ter filhos e netos não é condição de pessoas por perto na maturidade. Não tento me enganar. Meus sessenta e cinco anos me colocam como da terceira idade em todas as classificações nacionais e mundiais. É, fiquei mesmo velha, e estou só. Dos três filhos, apenas um mora na cidade. As demais moram fora, mas estão sempre em contato, telefonando e visitando. Não tenho plano algum para agora, e não me sinto triste em estar só. Gosto da minha companhia, e não me assusto em encontrar comigo todos os dias.



Na maior parte do tempo fico parada pensando. Nada muito complicado que me faça sofrer. Não sinto muito desejo de ler, coisa que noutros tempos me tomava boa parte do dia, entre o trabalho e outros afazeres. Quase não vejo televisão e nem ligo o rádio. Antes eu gostava muito de cantar, mexer no jardim, mas deixei de fazer essas coisas que me davam prazer, e nem sei o motivo. Também limpava e cuidava da casa, mas hoje delego a terceiros. Não creio que valha a pena gastar energia nisso.



Hoje, quando saia de casa, ouvi um grupo de jovens em algazarra atrás de mim. Eles viram que eu deixava a moradia e também que acendi a luz do portão, ainda em pleno dia. Fui com minha irmã à casa de outra irmã, no chá de bico de uma sobrinha-neta. Ela espera seu segundo filho. Ficamos numa área agradável ao lado da piscina, conversando gostosamente perto da jabuticabeira carregada de frutos maduros, mas não vi ninguém tirar uma jabuticaba sequer. Estar entre parentes que gosto me traz satisfação, principalmente nessa tarde de domingo de temperatura amena e brisa suave. Poucas mesas, rumor leve de vozes, entre bolos e salgados, o dia acabara finalmente. Após as despedidas, volto tranquila para casa.



Era noitinha e, enquanto a minha irmã manobrava o carro, junto com minha sobrinha, eu tento enfiar a chave no tambor da fechadura, mas o portão eletrônico está aberto. Noto logo uma toalha jogada perto do portão, então penso que possa ter sido deixada pelo meu neto, que às vezes vem nadar, e tem a chave da casa. Percebo a luz da cozinha acesa, corro à rua e chamo a minha irmã que ainda está ao alcance da minha voz. Ela vem comigo para o gramado, mostra que outras luzes da casa também estão acesas, inclusive a do meu quarto, e diz que poderá ter gente na casa. Minha sobrinha, já conosco, vê que a porta da sala tinha sido arrombada. Talvez por um especialista, pois é uma tetrachave e está inteira. Saímos rapidamente para a rua, e chamo o meu filho, numa casa próxima, que vem nos ajudar a decidir o que fazer. Temos receio de entrar na casa, e a polícia é acionada. Os soldados chegam e entram primeiro, descobrindo que a fechadura não foi destruída. A casa está com sua disposição normal de móveis e objetos, exceto pelo quarto de hóspedes e o meu quarto onde parece que passou um vendaval. Nada se encontrava no lugar em que deixei. Os vários pares de sapatos estão espalhados pelo local, assim como as muitas bolsas, todas abertas. Um cofre grande e pesado foi retirado do guarda-roupa e arrombado com maçarico e pé de cabra. Quem fez o serviço entende do assunto e sabia o que iria encontrar. Todas as jóias sumiram exceto as que estavam comigo, e outra menor que não foi vista pelos ladrões.



Um misto de insegurança e raiva me invadiu. Senti-me pequenina e impotente, totalmente à mercê da sorte, ou do azar. Assustada, compreendi que o meu castelo, o meu tesouro, o meu canto, onde me sentia tão segura, fora ultrajado por estranhos. As jóias, que possuíam valor, foram levadas por mãos imundas e no lugar delas ficou o vazio material e a bagunça. A invasão da minha casa, do meu refúgio, da minha intimidade, da minha privacidade, me trouxe agora uma sensação tão forte quanto à primeira: alívio. O que aconteceria se eu estivesse em casa? Todos os sentimentos mesclam-se na minha mente agora. Diante do real, ficamos perdidos no imaginário e na força do “se” e todas as possibilidades que ela encerra. Nesse caso, as perdas verdadeiras foram menores do que poderiam ter sido. Decido ampliar os itens de segurança para além dos cadeados e das cercas elétricas; os pontos eletrônicos e câmeras vão também me acompanhar. E não é por que eu quero não. É urgente! No entanto tenho sobre mim uma espada: o medo de estar dormindo com o inimigo. Arriscado desconhecer que posso ter sido vítima de uma víbora. Não quero ser injusta, mas uma severa diligência irá esclarecer os fatos. E mais uma vez a máxima aconteceu: os meus dedos estão aqui comigo.

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