Mara Narciso
Médica e graduanda em Jornalismo
Ouvimos a vida toda sobre a incapacidade do brasileiro, de que é burro, não sabe pensar, que somos uma sub-raça, que a miscigenação elevada nos tirou a capacidade de raciocínio. Isso é particularmente tido como verdade quando a pobreza e a desnutrição se aliam para enfraquecer os neurônios da infeliz população. O governo sabe que não adianta ensinar nada se a barriga está vazia. Assim, mais importante do que o giz e a professora é a merenda escolar.
Como se diz por aí: Minas são muitas. E cada região tem a sua característica, o seu modo e a sua necessidade específica. Os mais carentes estão no Norte, no Vale do Jequitinhonha e no Vale do Mucuri. A disputa pelo primeiro lugar é brava nessas paragens. A má fama de preguiçoso do barranqueiro só não é maior do que a que ronda os baianos, nossos vizinhos próximos. Mas vamos averiguar o que acompanha os pés descalços desses barranqueiros desvalidos.
Antes da construção da ponte que atravessa o Rio São Francisco na altura de Pedras de Maria da Cruz—nome lindo!--, para Januária, havia uma enorme balsa metálica que fazia o transporte de pessoas e veículos. Quando os carros começavam a chegar, os meninos de idade e cores indistintos começavam a aparecer aos bandos. Todos marrons em suas várias tonalidades, traziam a fome estampada na cara, o nariz escorrendo, o cabelo desgrenhado marrom avermelhado, o chinelo de borracha de tiras de cores diferentes, ou simplesmente os pés esparramados no chão de terra vermelha, vestindo um calção cinza de cordão na cintura e só. Mais nada. A barriga inchada no corpo magro era indício de lombrigas de vários tipos. No tempo de manga ou pequi, estavam salvos, exceto do amarelão da cor das frutas, que entranhava em suas peles, especialmente mãos, orelhas e nariz. A barriga tinha um eterno escorrer do suco dessa fruta.
Mas era o meio do ano de 1991. O sol estava forte, mas nem tanto quanto ele consegue ser por aqui, pois era inverno. Os viajantes esperavam a balsa encostar, na margem do rio baixo, e os meninos, às levas, incomodavam os passantes com os seus pratos esmaltados descascados, velhos e sujos, com os peixinhos fritos, passados no fubá e encharcados. O cheiro característico de gordura velha não era nada convidativo, mas muitos compravam esses peixes, às vezes todo o conteúdo do prato coberto por um plástico ou paninho roto. Nem era hora do almoço, mas viajante tem mania de comprar coisas de comer em todas as paradas.
Então a balsa ancorou. Logo os veículos foram se acomodando naquele jeito milimetrado, com o funcionário orientando para encostar mais e mais para caber maior número de carros, ônibus e caminhões. A distribuição das cargas era calculada para que o risco de tombamento fosse menor. Enquanto os carros iam sendo ajustados, os viajantes ficavam do lado de fora deles para, num acidente, terem maior chance de escapar. Não havia coletes salva-vidas e nem se cogitava falar sobre isso.
Os meninos invadiam a embarcação aos montes, todos com os seus pratos de peixes fritos. Ofereciam o produto e davam o preço do todo ou da unidade. Os vendedores teriam, pelo tamanho, uns nove a doze anos. Podiam ter mais, já que essa turma não costuma crescer muito. Aquele era o primeiro dia do Real, a moeda que estava substituindo o Cruzeiro Real. As crianças diziam o preço antigo e na hora faziam de cabeça a conta e davam o preço no dinheiro novo, na moeda cujo nome mal tínhamos acostumado. Para fazer isso era preciso dividir o valor dos muitos mil Cruzeiros Reais por 2.725,00, a URV—Referência Real de Valor--, antes da transformação, e dar o preço em Reais. Conta complexa, que os nossos meninos faziam sem pestanejar, e sem erro.
Que isso nos sirva de lição e nos leve a reconsiderar alguns conceitos. Os burros podem não ser os outros.