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Sexta-Feira,10 de Janeiro

Uma análise crítica do jovem Ferreira Gullar aos 80 anos

Jornal O Norte
Publicado em 16/09/2010 às 09:48.Atualizado em 15/11/2021 às 06:38.

Felippe Prates


Jornalista e escritor



Mesmo na produção de autores de maior consistência é quase inevitável a presença de poemas que se sobreponham à obra inteira.  A “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias e “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu, são exemplos de textos cuja ressonância ultrapassa tudo mais que ambos tenham escrito.  Os textos antológicos se, por um lado, perpetuam o nome do autor, por outro tendem a fazer-nos esquecer do restante de sua bibliografia, dando-se o não lido pelo lido.  Em “Legado”, Carlos Drummond de Andrade, ironicamente, previu que, de tudo que fizera, restaria, apenas, uma pedra havida no meio do caminho!  Manuel Bandeira, para poupar o tempo dos pósteros, tratou de montar, valendo-se dos supostamente melhores versos de sua lavra, um poema a que intitulou “Antologia”.



Num universo poético tão multifacetado quanto o de Ferreira Gullar, cujas comemorações dos seus 80 anos vêm encontrando justa repercussão, seria difícil eleger-se um texto-síntese.  Afinal, síntese de quê, se no processo de sua escrita o poeta é o primeiro a desautorizar a soberania de uma única voz ou de um só ponto de vista?  A precariedade e a incerteza são atributos por demais prementes para que deles o poeta possa abrir mão.  Emboramente a dificuldade da ocorrência, nas  grandes obras literárias, de um único texto que condense um autor, certos escritos, todavia, parecem conter, em larga medida, as questões cruciais em que o mesmo sempre retorna.  E, muitas delas, no caso de Gullar, convergem para “Traduzir-se”.



Coincidentemente, nossa querida e letrada leitora Cleonice, nos solicita, por e-mail, que façamos uma análise crítica deste poema de Ferreira Gullar.  Pois, não. Vejamos, “Traduzir-se”:



“Traduzir”, etimologicamente significa “conduzir para o outro lado” e é desse trânsito que o poeta se ocupa, implicando, na operação, o próprio sujeito, através do “se” reflexivo.



O poema, em aparência, bastante simples, desdobra o embate entre os princípios da ordem e da desorganização, que se alojam, respectivamente, nos dois versos iniciais e nos dois versos finais de cada uma das cinco primeiras quadras.  Nos versos 1 e 2, o sujeito se define por aquilo que compartilha com as demais pessoas, numa série de ações e de situações tacitamente referendadas pelo senso comum: ele pesa, pondera, almoça, janta, é permanente.  Nos versos seguintes residem a dessemelhança, as marcas associadas: fundo sem fundo, estranheza, solidão, delírio. Tal movimento, ao chancelar um regime binário, manteria ambos os lados como instâncias inarredáveis, sem o horizonte de travessia a que o traduzir acena.  Antes de vermos como o impasse se equaciona, observemos que o confronto entre o campo da regularidade e do desvio se incrusta na própria composição do poema.  Não por acaso, os desregramentos formais acontecerão nos versos 3 e 4, exatamente aqueles que, do ponto de vista semântico, expressarão o dissenso e a dissimetria.  Nas quadras, todos os versos 1 e 2 apresentam-se, invariavelmente, com 6 e 4 sílabas; na outra parte, versos 3 e 4, a métrica foge ao padrão, oscilando entre 2 e 6 sílabas.  Também a rima, no enlace dos versos 2 e 4, reflete os dois movimentos, pois ora abriga a regularidade (mundo/fundo; multidão/solidão; permanente/repente), ora se expressa em divergência fonética (pondera/delira; vertigem/linguagem).  Expressivamente, a rima passa a “delirar”, ou transviar-se, quando surge a palavra “delira”.  A própria estrofação registra o compasso entre tendência à ordem, e deriva do desvio, pois após cinco quadras o poema se encerra com uma quintilha.



A confluência e a porosidade recíproca de espaços ditos impermeáveis já se prenuncia, porém, no campo da forma.  O sinal gráfico que cinde os dois territórios (ao cabo de cada verso 2) é um ponto e vírgula, um sinal sem a fluência sintática que a vírgula encadeia, mas também sem o caráter demarcatório que o ponto estabelece.  Ademais, ao lermos a sexta estrofe, vemos que, pela primeira vez, os versos 1 e 2 registram a invasão da “outra parte”, a do descontrole, no território textual até então reservado ao equilíbrio;  portanto, na estrofe 6, o “primeiro lado” do poema, ao acatar a intrusão da vertigem, já exibe uma parte dentro da outra parte, antecipando aquilo que o conteúdo do texto vai, por fim, propor: o imperativo da superação de barreiras entre o que seja da ordem pessoal (vertigem) e o que seja da ordem do coletivo (linguagem).



A última estrofe insinua, interrogativamente, que a arte é a região em que as antinomias perdem força, em prol de um horizonte avesso à compartimentação.  Não se trata de traduzir algo para outra coisa, circunstância em que o “algo” se perderia, diluído nas coisas para as quais foi traduzido;  trata-se de traduzir algo em outra coisa, pois, nesta nova circunstância,  o “algo” lá se mantém, mesclado àquilo no qual se transforma.



Se fracionarmos a palavra “parte”, descobriremos que ela contém a palavra “arte”.  Para tanto, porém, não basta apenasmente dividir as “partes” e se fizermos o que a norma preconiza, eis-nos de volta, na primeira sílaba, ao “par-“, ou seja, ao binário.  Duas partes representam muito pouco e ficam infinitamente aquém da imensidão do espaço que a poesia alcança e domina.  É o que se percebe em seu belo poema “Traduzir-se” e na própria obra de Ferreira Gullar.  O título de seu novo livro “Em alguma parte alguma”, que criticaremos a pedido da editora, reforça a vocação nômade da palavra poética, igualmente perquiridora do silêncio inacessível das mais obscuras galáxias e do cheiro de alfazema aprisionado em alguma velha gaveta alguma de São Luís do Maranhão, terra do poeta.







Uma parte de mim            Uma parte de mim        Uma parte de mim     Uma parte de mim


é todo mundo;                   é multidão;                    pesa, pondera;            almoça e janta;


a outra parte é ninguém,    outra parte estranheza   outra parte                 outra parte


fundo sem fundo.              e solidão.                       Delira                         se espanta



                                 Uma parte de mim        Uma parte de mim     Traduzir uma parte


                                 é permanente;                é só vertigem;            na outra parte


                                 outra parte                     outra parte,                 - que é uma questão


                                 se sabe de repente          linguagem.                 de vida ou morte –


                                                                                                           será arte?

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