Felippe Prates
Jornalista e escritor
Mesmo na produção de autores de maior consistência é quase inevitável a presença de poemas que se sobreponham à obra inteira. A “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias e “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu, são exemplos de textos cuja ressonância ultrapassa tudo mais que ambos tenham escrito. Os textos antológicos se, por um lado, perpetuam o nome do autor, por outro tendem a fazer-nos esquecer do restante de sua bibliografia, dando-se o não lido pelo lido. Em “Legado”, Carlos Drummond de Andrade, ironicamente, previu que, de tudo que fizera, restaria, apenas, uma pedra havida no meio do caminho! Manuel Bandeira, para poupar o tempo dos pósteros, tratou de montar, valendo-se dos supostamente melhores versos de sua lavra, um poema a que intitulou “Antologia”.
Num universo poético tão multifacetado quanto o de Ferreira Gullar, cujas comemorações dos seus 80 anos vêm encontrando justa repercussão, seria difícil eleger-se um texto-síntese. Afinal, síntese de quê, se no processo de sua escrita o poeta é o primeiro a desautorizar a soberania de uma única voz ou de um só ponto de vista? A precariedade e a incerteza são atributos por demais prementes para que deles o poeta possa abrir mão. Emboramente a dificuldade da ocorrência, nas grandes obras literárias, de um único texto que condense um autor, certos escritos, todavia, parecem conter, em larga medida, as questões cruciais em que o mesmo sempre retorna. E, muitas delas, no caso de Gullar, convergem para “Traduzir-se”.
Coincidentemente, nossa querida e letrada leitora Cleonice, nos solicita, por e-mail, que façamos uma análise crítica deste poema de Ferreira Gullar. Pois, não. Vejamos, “Traduzir-se”:
“Traduzir”, etimologicamente significa “conduzir para o outro lado” e é desse trânsito que o poeta se ocupa, implicando, na operação, o próprio sujeito, através do “se” reflexivo.
O poema, em aparência, bastante simples, desdobra o embate entre os princípios da ordem e da desorganização, que se alojam, respectivamente, nos dois versos iniciais e nos dois versos finais de cada uma das cinco primeiras quadras. Nos versos 1 e 2, o sujeito se define por aquilo que compartilha com as demais pessoas, numa série de ações e de situações tacitamente referendadas pelo senso comum: ele pesa, pondera, almoça, janta, é permanente. Nos versos seguintes residem a dessemelhança, as marcas associadas: fundo sem fundo, estranheza, solidão, delírio. Tal movimento, ao chancelar um regime binário, manteria ambos os lados como instâncias inarredáveis, sem o horizonte de travessia a que o traduzir acena. Antes de vermos como o impasse se equaciona, observemos que o confronto entre o campo da regularidade e do desvio se incrusta na própria composição do poema. Não por acaso, os desregramentos formais acontecerão nos versos 3 e 4, exatamente aqueles que, do ponto de vista semântico, expressarão o dissenso e a dissimetria. Nas quadras, todos os versos 1 e 2 apresentam-se, invariavelmente, com 6 e 4 sílabas; na outra parte, versos 3 e 4, a métrica foge ao padrão, oscilando entre 2 e 6 sílabas. Também a rima, no enlace dos versos 2 e 4, reflete os dois movimentos, pois ora abriga a regularidade (mundo/fundo; multidão/solidão; permanente/repente), ora se expressa em divergência fonética (pondera/delira; vertigem/linguagem). Expressivamente, a rima passa a “delirar”, ou transviar-se, quando surge a palavra “delira”. A própria estrofação registra o compasso entre tendência à ordem, e deriva do desvio, pois após cinco quadras o poema se encerra com uma quintilha.
A confluência e a porosidade recíproca de espaços ditos impermeáveis já se prenuncia, porém, no campo da forma. O sinal gráfico que cinde os dois territórios (ao cabo de cada verso 2) é um ponto e vírgula, um sinal sem a fluência sintática que a vírgula encadeia, mas também sem o caráter demarcatório que o ponto estabelece. Ademais, ao lermos a sexta estrofe, vemos que, pela primeira vez, os versos 1 e 2 registram a invasão da “outra parte”, a do descontrole, no território textual até então reservado ao equilíbrio; portanto, na estrofe 6, o “primeiro lado” do poema, ao acatar a intrusão da vertigem, já exibe uma parte dentro da outra parte, antecipando aquilo que o conteúdo do texto vai, por fim, propor: o imperativo da superação de barreiras entre o que seja da ordem pessoal (vertigem) e o que seja da ordem do coletivo (linguagem).
A última estrofe insinua, interrogativamente, que a arte é a região em que as antinomias perdem força, em prol de um horizonte avesso à compartimentação. Não se trata de traduzir algo para outra coisa, circunstância em que o “algo” se perderia, diluído nas coisas para as quais foi traduzido; trata-se de traduzir algo em outra coisa, pois, nesta nova circunstância, o “algo” lá se mantém, mesclado àquilo no qual se transforma.
Se fracionarmos a palavra “parte”, descobriremos que ela contém a palavra “arte”. Para tanto, porém, não basta apenasmente dividir as “partes” e se fizermos o que a norma preconiza, eis-nos de volta, na primeira sílaba, ao “par-“, ou seja, ao binário. Duas partes representam muito pouco e ficam infinitamente aquém da imensidão do espaço que a poesia alcança e domina. É o que se percebe em seu belo poema “Traduzir-se” e na própria obra de Ferreira Gullar. O título de seu novo livro “Em alguma parte alguma”, que criticaremos a pedido da editora, reforça a vocação nômade da palavra poética, igualmente perquiridora do silêncio inacessível das mais obscuras galáxias e do cheiro de alfazema aprisionado em alguma velha gaveta alguma de São Luís do Maranhão, terra do poeta.
Falem-nos:
felippeprates@ig.com.br
Uma parte de mim Uma parte de mim Uma parte de mim Uma parte de mim
é todo mundo; é multidão; pesa, pondera; almoça e janta;
a outra parte é ninguém, outra parte estranheza outra parte outra parte
fundo sem fundo. e solidão. Delira se espanta
Uma parte de mim Uma parte de mim Traduzir uma parte
é permanente; é só vertigem; na outra parte
outra parte outra parte, - que é uma questão
se sabe de repente linguagem. de vida ou morte –
será arte?