Um passeio no coração sofrido das Gerais

Jornal O Norte
Publicado em 22/02/2010 às 08:56.Atualizado em 15/11/2021 às 06:21.

Délio Pinheiro


Jornalista e acadêmico de Direito



No último mês de janeiro, já findo graças à incansável sanha do tempo, iniciei um novo trabalho. Agora me dedico às assessorias de comunicação do CAA, Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, e da AMA, Associação Mineira de Agroecologia.  O CAA é uma ONG respeitadíssima, que se esforça há quase 25 anos para assegurar melhor qualidade de vida aos pequenos produtores rurais de comunidades tradicionais do Norte de Minas. Vazanteiros do rio São Francisco, índios xacriabás, comunidades quilombolas e geraizeiros, entre outros, se enquadram neste rol de prioridades do CAA. Trata-se de um trabalho sério, com muitos serviços prestados ao povo, sobretudo o mais humilde, da região.



Uma das minhas pretensões neste ano de 2010 é não trabalhar em rádio, coisa que fiz na maior parte de minha vida até aqui. Refiro-me a trabalhar em uma emissora, uma vez que alguns dos trabalhos que consegui para este ano incluem, justamente, programas radiofônicos, para prefeituras, Câmaras Municipais e o próprio CAA. Mas este trabalho em “rádio” será um trabalho prazeroso, feito nos cinco dias da semana que Deus planejou para trabalharmos. Deixando os fins de semana para descansar, viajar e outras coisas que fiquei tanto tempo praticamente impedido de fazer graças ao trabalho diário em uma emissora.



Mas vamos ao que interessa, logo no meu primeiro dia de trabalho no CAA fui escalado para fazer uma visita ao tradicional Brejo dos Crioulos, comunidade quilombola que se localiza no vórtice de três municípios do Norte de Minas: São João da Ponte, Verdelândia e Varzelândia. A luta e os costumes daquela gente já foram estudados em teses de mestrado, doutorado e são bastante conhecidas também fora dos anais acadêmicos. Mas era a primeira vez que eu iria conhecer in loco tal realidade e qual não foi a minha surpresa ao me deparar com algumas das pessoas mais gentis que conheci na vida até agora.



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Sim, são os quilombolas do Brejo dos Crioulos. Esta denominação abrange os moradores de algumas comunidades como Caxambu, Furado de Modesto e Orion, todas nas redondezas. Mas é como Brejo dos Crioulos, nome forte e acolhedor, que eles se uniram para lutar.



Saímos de Montes Claros na fumaça do dia, quando o alvorecer anunciou uma quarta-feira de sol. No carro do CAA, além de mim, estavam Carlos Dayrell, Adriana Rocha e minha querida ex-colega de Jornalismo, Helen Santa Rosa, que precisou se despedir de seu filho de apenas seis meses, deixando-o com a avó, antes de pegarmos a estrada. Ócios do ofício.



Chegamos à comunidade de Araruba por volta das 10h da manhã, após sacolejarmos durante mais de três horas em estradas de asfalto e de terra. Ao chegarmos conheci uma figura muito divertida chamada Nequinha. Ele vive fazendo gracejos, alguns incompreensíveis, e truques de mágica, estes muito bons. Além de possuir uma inocência comovente, Nequinha é uma espécie de guia, quando ciceroneia os visitantes pelas entranhas do território quilombola reconquistado na justiça. Uma ínfima parte daquilo que eles, efetivamente, são merecedores.



Tudo lá é simples. As casas, as acomodações para as reuniões, os hábitos. Mas nesta simplicidade esconde-se uma notável vontade de viver e de se libertar das amarras da injustiça. Os pioneiros da região, que viviam em um quilombo nos tempos árduos da escravidão, prezavam por sua liberdade, e os descendentes destes escravos, alguns bastante estudados e escolados na vida, se dedicam ao mesmo metié tantos anos depois.



A luta parece nunca cessar. Os capitães do mato de hoje são ricos fazendeiros que se apossaram da terra há muitas décadas acenando com suas falsas escrituras, expropriando os moradores de suas campinas férteis e de seu jeito de viver, confinando-os em lugarejos empoeirados, sem horta, sem plantação. Lugarejos como Araruba.



Mas a alma dessa gente clama por justiça e liberdade, como diz a música do Grupo Agreste: “Pois quem nasceu pra ser guerreiro não aceita cativeiro”. E eles foram à luta. Já reconquistaram um naco importante da suas antigas terras e esperam que o STJ, onde foi parar a pendência, possa autorizar a ocupação de todo o território.



Enquanto isso não acontece a luta continua. Tive a honra de ser chamado por eles de “aliado”, de ter almoçado sua comida simples e salgada, de ter fotografado seus filhos e seus pais e ter conhecido “Seo” Elizeu, um negro retinto, de quase 80 anos, com seus olhos faiscantes e vivazes e uma energia invejável. Basta informar que sua esposa ainda está na casa dos 20 anos e o casal tem filhos ainda pequerruchos. Ao final da visita, devidamente municiado de fotografias e emoções, ainda fui presenteado com uma garrafa pet até o gargalo com fava, uma delícia produzida por lá. Uma gentileza de “seo” Elizeu para seus amigos e “aliados”. Não precisava. Conhecer essa gente batalhadora foi o melhor presente que podia ganhar.

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