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Terça-Feira,13 de Maio

Tio Pedrim de Araújo

Jornal O Norte
Publicado em 06/10/2009 às 10:06.Atualizado em 15/11/2021 às 07:13.

Felippe Prates



Alguns matutos norte-mineiros são dados a fantasiar as suas narrativas, conferindo às mesmas um tom policrônico e hilário. Atribuem aos fatos uma importância muitas vezes exagerada, aumentando e melhorando a estória. Pedrim de Araújo, nosso tio avô, casado com tia Lolola, irmã de Vovó Jainha, ilustre representante dessa escola, foi um mestre na arte do causo. Bastante esnobe, exalava seriedade e severidade, impressionando a todos pela pose quase aristocrática, sua loquacidade, além da ótima verve. Uma figuraça!



Tio Pedrim de Araujo, coronel da Guarda Nacional, quando qualquer cidadão de certo aprumo podia comprar um posto imponente na referida Guarda, na verdade foi modesto dono de um sítio, criador de porcos e algumas vaquinhas na região do Rio Pacuí, morador com ótimo prestígio na campesina cidade de Coração de Jesus, filho de tradicional família do local.  Casou-se com dona Flora Lafetá, filha do emérito Conde Lafetá e se julgava, pelo nascimento e pelo casamento, ainda mais importante do que realmente era.



Assim, tio Pedrim de Araújo, o coronel Pedro de Araújo Abreu, um Barão de Munchausen do cerrado, notabilizou-se por ser um mestre das narrativas fantásticas, valorizadas pelo seu habitual  bom humor, cultuador do hilário e de uma boa tirada, de repente, no auge da conversa, um grande proseador.



Além de “fazendeiro” era dono de uma bodega, (uma venda, como falamos por aqui), instalada no piso de seu imóvel residencial, um belo casarão colonial no centro da querida cidade. Dotado de uma preguiça enorme, abria o estabelecimento pela manhã, nunca antes das 10, deitava no balcão, preparava e fumava seu cigarro de palha, meio adormecido, naquela madorna sertaneja.  De repente, surgia um desgraçado de um freguês para perturbar sua paz, querendo comprar rapadura. Vejam só que coisa desagradável... Ele dizia que não tinha, embora as rapaduras estivessem se derretendo na prateleira do estabelecimento, bem à sua frente. Diante da insistência do maldito comprador, apontando para as rapaduras, só para não se levantar Pedrim informava, simplesmente:



- Não é pra negócio! É pro uso da casa.



Espírito inventivo, sempre prestigiando a sua tradicional preguiça, pendurava meia rapadura numa corda que ficava balançando em cima de sua cabeça.  De vez em quando, tirava as duas dentaduras, as raspava na rapadura e as recolocava na boca, sorvendo, de olhos fechados, em semi-êxtase, aquele manjar delícioso, infinitamente melhor do que a ambrosia dos deuses do Olimpo...



Esta cena, nosso querido primo Charles –  o premiado cineasta Carlos Alberto Prates Correia – incluiu num filme dirigido por ele e anda correndo mundo. Nosso herói era de tal modo diferente dos demais moradores que, nos meses de frio na chapada, enquanto todos vestiam blusas de mangas compridas, tio Pedrinho tirava a camisa e se apresentava com o dorso nu.  Consta que tal valentia lhe valeu várias pneumonias...



Segundo ele, era tão ligeiro o seu cavalo de nome Fenomenal, que percorria a distância de Montes Claros a Coração de Jesus, bem uns cinqüenta quilômetros, toda manhã, para comprar pão na Padaria Santo Antônio, numa ida e volta que levava apenas quarenta minutos!  E dizia, orgulhoso:



- Flora adora o pão quentinho que lhe trago, pois até derrete a manteiga...



Cabeça feita, calmo, observador, não se esquentava com coisa alguma. Os causos e as tiradas inteligentes levavam a marca de sua mitomania positiva, ou seja, um modo particular de ser e de aparecer através de uma imaginação fértil, que nunca fez mal a ninguém, nos quais acreditava piamente e que o tornaram bastante famoso, pois seus relatos ganharam corpo, criaram escola e até hoje divertem a todos, quanto menos seja pela incrível cratividade.



Morando em Belo Horizonte, toda vez que viajávamos a Montes Claros, a visita aos parentes e amigos de Coração de Jesus, era tradicional. Aos 5 anos de idade, numa dessas viagens, Papai, preocupado, nos preveniu sobre as histórias mirabolantes de tio Pedrinho, repetindo, várias vezes:



- Olha! Seu tio Pedrinho conta umas histórias diferentes, que parecem pouco verdadeiras, mas, para não aborrecer sua tia Lolola, você ouve e fica quieto. Não diga nada e nem faça perguntas.  Olha lá, hein...



Chegando a Coração de Jesus, durante o caprichado almoço que nos aguardava, tio Pedrinho simplesmente contou que ao abrir um buraco para plantar uma árvore em sua fazenda, deu com algo estranho, parecido com uma pedra.  Cava daqui, cava dali era nada mais nada menos do que uma arca de piratas cheínha de ouro, pedras preciosas, jóias, uma maravilha!  Papai só de olho em nós...  Apesar de super recomendado, a natural curiosidade de um menino de 5 anos de idade, descobrindo o mundo, falou mais alto, afinal tesouro de piratas era bom demais, valia o risco de quebrar a promessa feita e, encantados, pedimos para ver a arca!  Houve um silêncio comprido, constrangedor, o mal-estar foi geral e só não insistimos porque os olhos de Papai, cravados em nós como dois punhais, nos desestimularam...



Sério e muito firme em suas narrativas, tio Pedrim dizia que sua criação de porcos era tão grande, que a vendia por minutos.                     



- Como assim, coronel?



- Muito simples. Quando surge algum comprador, abro a porteira do chiqueiro, os animais vão saindo na carreira e, de olho no relógio, lhe vendo, então, cinco, dez minutos de porcos, de acordo com suas posses.



- E o senhor ainda tem muitos porcos na sua fazenda, coronel?



- Ahhh... Tem bem umas cinco horas e meia!...



Tio Pedrim de Araújo morreu atropelado em Belo Horizonte, onde se encontrava visitando suas filhas. Curiosamente, o jornalista Newton Prates, nosso pai, seu sobrinho e grande amigo, que residia no Rio de Janeiro, alguns dias após o óbito recebeu uma carta de tio Pedrim, postada em Coração de Jesus, no dia de sua partida, em que dizia:  “Estou viajando para Belo Horizonte, onde deverei permanecer por tempo indeterminado...”



Segundo o festejado cronista Raphael Reys, especialista na matéria, teria acontecido uma premonição, ou seja, tio Pedrim previu a sua morte.



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