Anelito de Oliveira
Podemos levar a sério ou simplesmente ignorar as ações ou omissões dos poderes públicos municipais, estaduais e federais. Nós, brasileiros em geral, temos preferido ignorá-las ao longo da história, mas especialmente nos momentos de democracia, o que, pra começo de conversa, é um enorme paradoxo: no momento em que podemos falar, calamo-nos. São muitas as justificativas para tanto, mas todas se ligam, de alguma forma, àquilo que Sérgio Buarque de Hollanda, no seu extraordinário Raízes do Brasil, chama de “cultura da personalidade”, traço herdado dos portugueses. Digamos que seja em função de um suposto bem-estar daquilo que identifica a pessoa, sua personalidade, que preferimos não levar a sério o que dizem, fazem ou não os nossos governantes. Levar a sério o que deles emana – é como a gente comum entende - significaria entrar numa rede de problemas, e o pior: problemas acreditados como insolúveis. Mas será que é assim mesmo?
- Pouco a pouco, consolidou-se no Brasil uma relação irresponsável entre poderes públicos e população que os legitima...
Pouco a pouco, consolidou-se no Brasil uma relação irresponsável entre poderes públicos e população que os legitima, não só através do voto, mas de todo um conjunto de práticas de obediência, sendo o voto apenas uma delas, certamente a mais nociva. São exemplos de uma obediência excessiva às ordens dos poderes públicos: não contestar a falta de policiamento preventivo nas áreas públicas, aceitar a morosidade do Judiciário em relação a julgamento de crimes hediondos, não exigir uma educação eficaz na rede pública, deixando esta tarefa a cargo de alunos e professores etc etc. À medida que somente os governantes, ocupantes dos poderes provisórios, e os governados, sustentáculos desses poderes, têm como tarefa inegável o enfrentamento dos problemas que se apresentam numa dada sociedade, torna-se incompreensível e inaceitável o silêncio de ambas as partes em face da realidade que nos circunda cotidianamente.
- Parece um contra-senso dizer tudo isso no país dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-passe de lotação...
Longe de se tratar de um silêncio de inocentes – porque ninguém é mesmo inocente nessa história -, trata-se de um silêncio, até certo ponto, premeditado, que tem sua finalidade, ainda que inconsciente. Da parte dos poderes, melhor, daqueles que lá se encontram, pode-se dizer que essa finalidade consistiria em manter o poder mediante a expectativa que o silêncio gera no seio da população. Da parte desta, melhor, dos muitos que nessa camada aspiram ao poder público, pode-se dizer que essa finalidade consistiria em manter a “amizade” com os “poderosos”, dando um notável exemplo de política de boa vizinhança. No inconsciente privativo dos poderes e da população – em termos de Brasil – tudo parece se passar assim: você não fala da minha vida nem eu falo da sua, nossa república será o bananal que sempre quisemos que fosse e nós, naturalmente, os bananas – e mais, para não perder o “gancho”: plantando bananeira enquanto o mundo explode por toda parte, inclusive na África e no Paraguai que um dia ajudamos a sacrificar.
Parece um contra-senso dizer tudo isso no país dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-passe de lotação, dos povos do cerrado etc, mas a questão é saber até que ponto podemos dizer que esses movimentos populares representam realmente a população brasileira, agem em nome dessa população. Numa cidade que concentra um número tão grande de estudantes de todos os níveis, como Montes Claros, não era tão grande o número de manifestantes na praça Dr. Carlos recentemente pelo meio-passe em lotação. Por outro lado, o movimento dos sem-terra continua demonizado por toda parte, sequer conseguindo avanços decisivos durante o Governo que seus membros também contribuíram para viabilizar. São exemplos que nos levam a repensar o conceito de população brasileira, a refletir sobre o que é realmente a população de um país de proporções continentais, marcado pela heterogeneidade. Talvez seja mesmo mais sensato falar em populações brasileiras, no plural, que em população brasileira, no singular.
Aqueles que, dentro dos poderes instituídos ou dentro da população, rebelam-se, não constituem a regra, mas sim a exceção, e seu rebelamento é, sobretudo, contra a indiferença que caracteriza tanto uma dimensão quanto outra. Para os sem-terra, sem-teto e os sem-passe, ninguém está, de fato, do seu lado: nem governos nem população, sendo ambos indiferentes, portanto, à sua causa, descomprometidos com a reforma agrária, com o fim do déficit habitacional e com a redução, plenamente compreensível, do valor do passagem em lotação para quem se encontra, pelo menos em tese, num processo de preparação para conduzir a sociedade brasileira por melhores caminhos, os estudantes. Se esses grupos dos “sem” realmente confiassem na boa vontade dos políticos que ocupam provisoriamente os poderes públicos, realmente confiassem que eles estão comprometidos com a solução de problemas cruciais que se verificam na sociedade, não se rebelariam, ficariam de braços cruzados, assistindo novela e jogo de futebol, como a maior parte da população brasileira. A descrença é o alimento da rebeldia dos “sem”, tanto quanto a indiferença é o alimento dos “com”.