João Caetano Canela
Chegou a minha hora de partir. Então, eu parto.
Deixo para trás alguém cujo coração partido e voz embargada me diz:
- Não vá se machucar, meu filho...
Junto-me aos do meu tempo que, iguais a mim, também partem.
Avançamos em bandos, numa marcha confusa, atropelada, mas eufórica.
Não estamos seguros de nós e não temos convicção daquilo que desejamos, mas ainda assim avançamos. Avançamos porque é tempo de avançar, tempo de se ir a um lugar que se situa no horizonte, embora não se saiba que lugar seja esse.
Faz uma manhã azul de sol sincero, manhã esta que acreditamos ser permanente e nos pertencer.
Há algazarra entre nós. Nossas namoradinhas estão conosco. Vestem roupas atrevidas, são sensuais, voluptuosas, como de resto somos todos nós. Por certo elas nos amarão e nós a elas, com todo arrebatamento.
Sentimo-nos donos do mundo. E não o seremos? Há quem diga que estamos numa festa. E não será verdade? Alguém de nós diz que sim, que estamos numa festa. Ao que outro de nós, corrigindo o companheiro, diz que não, que não estamos numa festa, mas sim “em festa”. Com o que todos concordamos, rindo muito dessa sutil distinção, pois afinal é tempo também de se rir.
E, assim, avançamos, indóceis, inquietos, turbulentos e, sobretudo, seduzidos por algo que não sabemos explicar, algo que não se define, mas que se promete a nós no horizonte acolá.
Alguém ficou para trás, com o coração partido e um apelo na voz:
- Não vá se machucar, meu filho...
Mas qual de nós há de ouvir apelos? Ouvimos, sim, a sedutora voz da vida, que sussurra promessas aos nossos imaturos ouvidos, oferecendo-nos o largo horizonte com todas as suas possibilidades. Não, não será o passado, com seus ecos afetivos, que haverá de nos chamar à razão e interromper essa marcha que, impulsionados pela necessidade de afirmação, empreendemos na direção do futuro, num rompante temerário.
Não há sinal de borrascas. O dia é claro, o céu é azul e o mundo, cujos horizontes promissores divisamos além, como que se rende a nós. A nós e aos golpes de ousadia e rebeldia com que vamos abrindo nosso caminho, soberanamente, sem cuidados e sem cautelas.
Nosso lema é avançar, nunca recuar. E por que recuaríamos, se somos uma força avassaladora acontecendo com urgência e insensatez? Que se abram as portas, pois do contrário nós as arrombaremos. Caso nos concedam passagem, muito bem, passamos, caso não, passamos da mesma forma, até porque, antes de sermos apenas moços turbulentos e insurgentes, somos principalmente um impulso da natureza, assim como uma onda do mar, incontida e poderosa, que investe contra a costa e só se detém na arrebentação, depois de perder o ímpeto.
E avançamos, em festa, embalados por um alvoroço, um alvoroço que brota da nossa mocidade. Há cheiros, música, prazeres e propostas no ar, e nós, distanciados das misérias e iniqüidades do mundo, estamos enamorados das estrelas que continuam nascendo e das rosas que continuam se abrindo. O mundo é nosso, o tempo é nosso, o amanhã é nosso, e ninguém há de dizer que não se os nossos hormônios, em efervescência e borbulhantes em nosso sangue, dizem que sim.
E avançamos, até que, no adiantado da marcha, algo acontece, qual seja: os campos amenos pelos quais transitamos, em festa, de repente se convertem, de maneira inesperada e inexplicável, em hostis campos de guerra que não imaginávamos existirem. Que fazer? Há espanto, perplexidade e insegurança entre nós, que então, presas fáceis, experimentamos ali toda a contundência de uma adversidade que nos fere fundo.
Já não temos o mesmo impulso, a mesma euforia de antes. Não estamos em festa, estamos em guerra. Não mais cantamos, não mais dançamos. Sequer avançamos. Atingidos naquilo que nos compelia, a cega ilusão de vida, começamos a duvidar tanto do horizonte acolá, quanto das promessas que nele se estampam, perguntando-nos se tal horizonte não será apenas uma inalcançável linha imaginária e se as promessas nele contidas não serão somente puras utopias.
Feridas que sangram nos obrigam a recuar. Temos os músculos cansados, os anseios frustrados, a alma traída. Estamos frágeis, frágeis e debilitados. Ademais, a manhã azul que nos pertencia foi tomada por uma escura e fria noite invernal que, também de repente, caiu sobre nós, consumindo nosso horizonte.
Chegou a minha hora de voltar. Então, eu volto.
Sobrevivente, não retorno incólume. Chego trazendo cicatrizes, chego trazendo em mim as marcas profundas do processo pelo qual passei. Chego sozinho, magoado pela mão pesada de um mundo inóspito que antes me afigurava bom. Chego em busca de proteção, de conforto, de carinho.
Chego em busca de alguém que deixei para trás e em cujo colo agora me aninho, murmurando seu nome com voz embargada:
- Mãe!