Sobre burros e veados

Jornal O Norte
Publicado em 19/05/2011 às 08:28.Atualizado em 15/11/2021 às 17:27.

Helder Caldeira (*)



Em tempos não tão distantes, recorri a uma famosa citação do ex-presidente francês Charles de Gaulle quando afirmou que “o Brasil não é um país sério”. E parece não ser mesmo. Dois eventos assombrosos recentes dão a exata conta dos rumos que a classe política está dando à compreensão da sociedade brasileira. O primeiro deles diz da reação escalafobética do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) à decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de reconhecer, perante a Justiça, os direitos das uniões homoafetivas em território nacional após duas décadas de leniência, desrespeito e omissão declarada do Poder Legislativo. O segundo revela que o Ministério da Educação aprovou livros que defendem o desvio das normas gramaticais cultas para a língua portuguesa visando combater o que eles chamaram de “preconceito linguístico”.



Quando o Ministério de Estado da Educação se exime da tarefa de analisar os livros didáticos que serão por ele produzidos e distribuídos em massa no Brasil - utilizando dinheiro público, portanto nosso - está aqui declarando oficialmente que é incapaz ou leniente com uma de suas funções primárias enquanto gestor público da área. A situação escandalosa colocada em pauta nesta semana é emblemática. O Programa Nacional do Livro Didático do MEC vai distribuir quase 500 mil livros a estudantes do ensino fundamental e médio onde defende o fim da idéia de certo e errado para a língua portuguesa. Segundo a obra, é “adequado” quando alguém diz “os livro” ou “as casa”, incorrendo quem julgar tal erro em “preconceito linguístico”.



O livro, assinado por 14 professores, argumenta que há a necessidade de uma educação plural que respeite as diferentes práticas de comunicação existentes na língua portuguesa. No entanto, há um raciocínio lulístico no assunto. Faz lembrar quando o ex-presidente veio a público em 2005 para defender os companheiros envolvidos no escândalo do mensalão e disse, direto da mesma França de De Gaulle, que “não era roubo, era caixa dois e que não era crime, porque todo mundo fazia isso”. Assim como, na época, ficou tudo por isso mesmo e Lula alcançou os píncaros de aprovação popular, desta vez é muito provável que essa barbaridade com nossa gramática tenha o mesmo destino, afinal, o Ministério da Educação já lavou as mãos quanto suas responsabilidades. É bom para nossa politicagem que o povo continue burro.



Paradoxalmente à essa concepção de pluralidade cidadã na Educação, o Poder Legislativo está financiando - também com dinheiro público - a incitação à violência ao permitir a produção e a distribuição nas escolas de um panfleto que recebeu a alcunha de “Kit Anti-Gay”, diretamente relacionado ao deputado federal Jair Bolsonaro, com apoio das bancadas católica e evangélica. Ou seja, os nossos digníssimos deputados estão chancelando o massacre público de todos aqueles julgados pecadores por suas escolhas e instintos na vida privada. Para essas figuras “notáveis”, um homem que ama outro homem é um pecador criminoso, enquanto um homem que mata outro por preconceito deve ser quase um mártir. Matem os veados, em suma.



Confesso minha profunda descrença nessa turma. É inadmissível que o Governo Federal e o Congresso Nacional estejam confirmando a máxima de que a ignorância do povo é boa para a manutenção de poder e, portanto, quanto mais enterrado no atoleiro estiver o brasileiro, melhor será para os poucos porcos que chafurdam no mar de dinheiro que o povo despeja diariamente nos cofres públicos através da maior carga tributária do planeta. Eu estou pagando, você está pagando, todos nós estamos pagando para que esses safados de terno e gravata continuem assinando as sentenças do nosso degredo enquanto povo, enquanto nação. Pluralidade virou codinome para curral eleitoral. Respeito tem data de validade e só pode ser consumido em período eleitoral. E dignidade e cidadania são medidas pelo seu potencial de arrebanhar votos e fieis.



Nessa toada, estamos construindo uma sociedade sob signos anacrônicos, solapando o patrimônio cultural da nação - que é o seu idioma, a sua língua - e incitando a violência contra outros cidadãos pelo simples fato de que somos incapazes de conviver em uma sociedade plural e diversa - ou seria o medo pela dimensão extrema da semelhança? Contra tudo que há de avanço e desenvolvimento das relações humanas no mundo, onde há um mínimo de civilidade, nossas “otoridades” estão nos dizendo: montemos nos burros e matemos os veados. Cruel assim. Ridículo assim. Ignominioso. Que país é esse, minha gente?! Em poucas palavras, estamos vivendo os dias do triunfo da ignorância. E será que isso é comportamento civilizado de país sério? Não, não é. Realmente o Brasil não parece ser um país sério.






(*) Escritor, articulista político e Conferencista - heldercaldeira@estadao.com.br

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por