Saudade indignada - Georgino Neto

Jornal O Norte
Publicado em 02/05/2008 às 15:59.Atualizado em 15/11/2021 às 07:31.

Georgino Neto



Não estou mais em Montes Claros. Por motivos maiores que o meu desejo, ou por desejo maior que alguns motivos, me encontro em Belo Horizonte há quase um ano. Tenho saudades. Saudade dos cheiros, dos sabores e dos sons da minha terra. Saudade principalmente das pessoas, que sempre considerei o maior patrimônio turístico de Montes Claros. Para amenizar a dor da saudade – onde mora a nostalgia, que os gregos tão bem denominaram nostos (regresso) e algòs (dor), ou seja, a dor de revisitar simbolicamente um momento ou lugar – tenho na medida do possível acompanhado os fatos do cotidiano da minha cidade. Quisera eu não ter sabido do que aconteceu naquela manhã do dia 24 de abril deste ano de 2008.



Estupefato, acompanhei o episódio marcado pela extrema intolerância, violência e violação dos direitos legítimos tão duramente conquistados. Primeiro o susto, o espanto. Depois a indignação e a revolta. Sinto-me na obrigação e no dever moral de reagir. Mas minhas armas são outras. No lugar dos cassetetes, das balas de borracha e do gás lacrimogênio, eu me valho das palavras. Elas ferem mais. A dor da agressão física dói, e dói muito. Mas no corpo passa. Os ferimentos da palavra são eternos.



Comecemos, então, pelo espancamento. O filósofo Mário Sérgio Cortella, alerta que “ser humano é ser capaz de dizer não ao que parece não ter alternativa. Apesar dos constrangimentos e da tentativa de seqüestro da nossa subjetividade, pensar não é, de fato, crime e, por isso, claro, não se deve parar”. Não nos calarão. O que pretendem os donos do poder local? Em pleno século XXI, estabelecem a violência do poder simbólico (Bourdier), e se expressam na punição controladora (Foucault) e arbitrária. Assentados sob a falsa aparência da democracia se guiam pelo fascismo de outrora, que bem dito por Roland Barthes, “o fascismo não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer”. Somos governados por uma ótica fascista, escamoteada de boas intenções com o intuito de se perpetuarem no poder.



Victor Hugo, em Os miseráveis, afirma que “julgar-se-ia bem mais corretamente um homem por aquilo que ele sonha do que por aquilo que ele pensa”. Sonhemos, pois, camaradas. Não o sonho no sentido de devaneio inútil. Mas o sonho que alimenta a esperança de dias melhores, e nos fortalece na luta e no embate. Não confundamos, tampouco, esperança com esperar. Só espera quem não tem alternativa. Esperança é não desistir, é ir adiante; esperançar é juntar com outros para fazer de outro modo. A espera é o apodrecimento da esperança. Quem espera nunca alcança, quem tem esperança luta.



É o que faziam os jovens em frente à prefeitura. Esperançavam. A crença na transformação social que objetiva a justiça e legitima a verdadeira democracia socialista era o motor de cada um daqueles jovens. A polícia reagiu a um comando, a uma ordem. De quem? Certamente, de quem se nega ao confronto, prática salutar em regime igualitário e temido em um regime totalitário. Na democracia prevalecem as vozes. Na ditadura imperam os silenciamentos. A polícia silenciou a voz do desejo da mudança. A polícia fez calar o coro dos descontentes, a mando dos “contentes”.



Por que o temor do diálogo, de peito aberto? O não enfrentamento demonstra insensibilidade e pouca noção do termo política. Aliás, como advertia André Destouches, “os ausentes nunca têm razão”. 



Sob o pretexto de “manter a ordem”, buscam o caos. Como diria Edgar Morin, “é a ordem que precisa da desordem”. A linearidade é algo pretendido apenas pelos que querem manter o Status Quo, pelos que querem manter as coisas “como estão”. Mas a vida é, por princípio, não-linear. O conflito é inerente à vida e, como nos alertava Guimarães Rosa, “viver é muito pirigoso”. Mas são justamente os perigos desta vida que dão sentido e graça à nossa existência.



Nas palavras de Caetano Veloso, “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. Vamos continuar lutando, guiados pelo senso da nossa crença. Crença legitimada historicamente, e construída com critérios embasados em verdade e justiça. É nisso que creio, efetivamente. E acredito, é este o ideal de cada uma das pessoas que se sentiram afrontadas naquela manhã de quinta-feira.



Camaradas, estamos construindo a nossa história. E a história é a construção permanente dos nossos sonhos e ideais. O passado está para ser reescrito; o passado é o “se fazer”, não o que foi. Por isso, quem pensa que fomos intimidados se equivocou. Fomos fortalecidos. Que venham outras manhãs de quinta-feira. Estaremos lá, sacando nossas vozes e exigindo os nossos direitos. Pois, para Djavan, “o cio vence o cansaço”.



Apesar de tudo, ainda acreditamos no espaço democrático, onde se assentam o diálogo e o respeito à diferença. Pois, como genialmente diz Veríssimo, “pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar”.



Não estou mais em Montes Claros. Mas de algumas coisas não tenho a menor saudade.



(*) Georgino Neto é professor da Unimontes e ex-secretário municipal de Esportes e Lazer.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por