Riacho do Fogo - por Eduardo Lima

Jornal O Norte
Publicado em 01/03/2007 às 10:26.Atualizado em 15/11/2021 às 07:59.

INTRODUÇÃO I



Regin,


No momento em que envio esta crônica, às 14h15 desta quarta, 28.02.07, piso o pavimentado terreno do tempo. O que, piedoso em mim, conserva-me a pele lisa - mas para arrancar-me da vaidade, dá-me o primeiro neto. Nasceu outro Eduardo. Moreno e pronto para enfrentar a vida árida. Viva Paola, minha menina. Viva Jean, pai de Eduardo. Vivam pais, mães e avós. Vivam os avôs, os mortos e vivos. Vivam a vida e todas as vidas.


Feliz,


Eduardo



. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .



INTRODUÇÃO II



Goya,


Parabenizo-o não como avô de carinho extremado e coração solfejado, mas como neto das estripulias que um dia fomos e que se converteram em saudade pisada e repisada nas suas impecáveis memórias sobre o Riacho do Fogo. Que o outro Eduardo que nem bebe nem beberá a água dos riachos palmilhados pela infância do eduardo etilicamnte avonetado seja tão prenhe de vida, emoções e aventuras como o filho de dona Hilda e irmão de todos nós, tios do Eduardo que acaba de se apresentar sob o ventre de Paola e as lágrimas benditas do pai Jean. É mais um poeta que nasce para tentar consertar esse mundão sem jeito de meu deus. Que seja melhor sucedido do que nós outros, malinos de ontem, bobalhões de hoje.


Muito feliz,


Regin



. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .



INTROSPECÇÃO: RIACHO DO FOGO



Eram piabas que vinham nos anzóis inocentes atirados nas águas rasas e transparentes do Riacho do Fogo, no rumo de Juramento. Águas que mediam léguas de fazendas e faziam um som de água nas touceiras de arbustos bem onde se insinuavam vaidosas, velhas mangueiras arqueadas de frutos. Numa curva leve, antes de deitar sobre a ponte, a mesma água acarinhava pedras redondas, dando-lhes ar de cachoeira, sobretudo pelo olhar dos pequenos. O riacho era um rio, os pés de manga sequóias quando posto um tamanho de menino diante da criação.



Havia uma doação sinfônica em tudo, como num arrojado ensaio de instrumentos, enquanto uns soins ariscos saltavam no lado mais denso do mato. Dos pássaros ouvia-se um medo algum, pois nem mesmo atiradeiras freqüentavam o portentoso império do silêncio, do verde e dos gestos de plantas e água. O que mais se ouvia - fosse e deveria ser - era o espreguiçar da tarde quando se recolhia para virar noite e, na noite, o roncar dos cururus, guardiões do lodo e dos mistérios do pântano.



O Riacho do Fogo tinha uma cantiga de pura terra, não de poeira, de terra mesmo, úmida de sereno e bênção. Assim é que se podia plantar uma horta à sua margem, que fosse nem muito perto da margem, onde a água já se dava quase borbulhando. Não havia margem, pois o riacho se transbordava num beijo molhado sobre o capim.



Anus catavam sementinhas ou pousavam no cupim dos bois preguiçosos que vinham beber água - uns até atolavam na beira e, contavam, fora visto ali um jacaré. E não mais contavam, garantindo o mistério sobre o que para muitos era mentira, mas coloria o coração de crianças e incrédulos. Quanto ao riacho, mesmo à noite, à luz dos olhos afogueados dos imensos cururus seguia seu ritual de cantigas, seguidas de um plic plic que, segundo um poeta afamado de Paracatu, era o som de uma gotinha pulando sobre pedras atrás do curso das águas, ela que se atrasara ao tentar lamber uma flor.



Lembrei-me dessas coisas pequenas de quando eu pequeno, coisas que na verdade sempre me pareceram imensas porque eu não tinha tamanho para compreendê-las. Lembrei tudo numa longa conversa com um afilhado de crisma, cujo pai tem uma fazenda em Juramento e que me contou sobre a morte do riacho. Aproveitei, então, para fazer poesia, lembrar-me, triste, que não coaxam mais os sapos das margens vadeadas do córrego onde os bois atolavam e onde a noite brincava de brilhar.



Do fundo da casa de Lia, minha prima, eu via uma lua no chão, numa beira do Riacho do Fogo, uma lua rasteira oferecendo um beijo. A lua não passeia mais por lá. São muitos anos os que engoliram essas visões de encantamento assim como são tantos os pés que pisaram esse caminho e sei lá, gente deve ter deitado fogo no capim, ou atirado pedras nos anus, ou derrubado as árvores dos soins ariscos.



Certo é que parece que nesse rumo passaram uns moços que, sedentos, devem ter pegado cuia de beber riacho e sorveram o do Fogo, inteirinho, como se toma um copo de cerveja num bar numa cidade de plástico. Nem os olhos dos cururus metem medo em homens com sede. Nem mangas suculentas matam sede de homem com sede. Nem pântanos nem piabas. Nada que seja da sinfonia da paisagem ou do sono das noites, nada mata a sede de homens com muita sede.



Por isso não quero que meus olhos vejam o Riacho do Fogo, que já sei, é hoje uma serpente de poeira onde foi vivo e verde. Beberam a sua água pequena. Beberam, sem dó, uma história imensa que eu tinha pra contar. Beberam a vida que os meninos de hoje nem viram nem verão. Os homens são insaciáveis e não se importam com os meninos.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por