Délio Pinheiro *
Parem o PAC, as brigas entre torcidas, parem os ensaios do carnaval. Algo muito estranho está acontecendo no Rio de Janeiro. Um assalto no semáforo, como tantos outros. Mas desta vez tem algo errado. Prendam a respiração, suspendam as campanhas humanitárias, esqueça o conflito judaico palestino.
Um menininho ficou preso pelo cinto de segurança depois que bandidos tomaram o carro de sua mãe, no semáforo, como acontece todos os dias. Esqueça as bobagens televisivas, os comentários do Jabbor, o Big Brother. Alguma coisa está fora da ordem.
Os bandidos arrancaram em altíssima velocidade, e o corpinho miúdo do João, é esse o nome dele, choca-se violentamente no asfalto, à medida que os bandidos fogem. Tudo isso diante do olhar esbugalhado da mãe e da irmã que, estáticas, não podem fazer nada.
Nem precisa mais se importar com os desvarios de Morales e Chávez, e nem com a saúde de Fidel, muito menos com a camisa do Dunga. O menininho está sendo arrastado violentamente, para espanto e revolta de todos os cidadãos que se desviam todos os dias das balas perdidas no Rio.
Ante a passagem do sinistro carro arrastando nossa inocência, muitos choram, outros gritam aflitos. E nessa hora não precisa pensar no Congresso Nacional e seus deputados esdrúxulos, nem na devastação da Amazônia.
João quicava no asfalto, como muitos disseram depois. E talvez, na sua imensa dor física, segundos antes de morrer, ele tenha pensado nas partidas de futebol que ainda gostaria de jogar, na escola ou no condomínio. Lugares onde ele se sentia seguro e protegido. Tão diferente do seu devastador destino. Esqueçam, portanto, o aquecimento global, os nossos índices pífios de crescimento, o desemprego.
Quando uma criança é arrastada cruelmente por intermináveis seis quilômetros, alguma coisa está terrivelmente fora do rumo, em rota de colisão. Esqueçam também o filme “Turistas” que poderia queimar a imagem do Brasil lá fora, lembra? Esqueça nossa decadência cultural e nossa educação falida.
Os bandidos, depois de intermináveis minutos, tentaram se livrar de João. Ziguezaguearam o carro tentando ficar livre do peso morto. Sim, João já morrera a essa altura dos fatos, e nem pôde se lembrar das brincadeiras em seu velotrol, quando ele fazia seus ziguezagues na rua de sua casa e no espaço exíguo de seu apartamento. Lugares onde ele se sentia livre, apesar dos olhares receosos de seus pais. João acabara de ganhar uma bicicleta no natal. Afinal de contas ele já não era mais um bebê para andar de velotrol, e no próximo fim de semana seu pai pretendia ensiná-lo a andar sem as rodinhas, artifício que lhe dava segurança nas voltas pelo condomínio.
Passados os seis quilômetros de martírio e crueldade, os bandidos abandonaram o carro, e o que sobrou de João, deixando para trás um rastro de sangue, e fugiram a pé. Quem se aproximou da horrenda cena teve impulsos de fazer justiça com as próprias mãos, outros se jogaram diante do corpinho estraçalhado de João e se puseram a chorar aflitamente.
Imagino que bem distante dali, em outra dimensão do tempo e do espaço, o próprio Jesus Cristo tenha ido receber João nas bordas do céu quando, já imaculado e livre das dores físicas, o nosso irmãozinho, que nunca conhecemos, entrou serelepe em sua nova morada.
Para sua surpresa, o menino se deparou imediatamente com a mais bela das bicicletas celestiais e, sem perder tempo, começou a brincar. E logo também ele percebeu que Jesus se tornara criança novamente e brincava com ele, através das nuvens de algodão e nas distantes nebulosas de nossa imaginação.
Aqui, de volta ao Brasil de 2007, a nossa revolta só aumenta. O que está em jogo não é simplesmente enquadrar os bandidos de 16 anos na lei. O mais urgente é tornar a lei mais severa, de uma maneira geral. Prisão perpétua já nesses bandidos, como naquele Champinha, que matou um casal de adolescentes numa mata no final de 2003 e que hoje a maioria de nós já esqueceu e que, possivelmente, já está de novos nas ruas.
Será que tornaremos em vão o sofrimento do menininho arrastado por bandidos no Rio?
Por isso, parem todas as guerras, parem o projeto de transposição do Velho Chico, parem o culto à estética perfeita e à ignorância, parem de falar no crime do milionário do Rio. Parem tudo. Porque quando uma criança de seis anos é arrastada por bandidos até a morte não nos resta outra coisa. Se não dermos uma resposta urgente, seremos obrigados a pedir:
Parem o mundo, eu quero descer.
* Jornalista
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