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Quinta-Feira,19 de Setembro

Reminiscências

Jornal O Norte
14/12/2009 às 10:03.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:20

Marcelo Valmor


Professor

“Filhos dos séculos das luzes, filhos da grande nação! Quando ante Deus vos mostrardes tereis um livro na mão! (Castro Alves)

Lembro-me exatamente quando meu pai, José Paculdino Ferreira Netto, se dirigiu à minha mãe e pediu a ela que me alfabetizasse. Foi uma surpresa para ela, já que contava com cinco anos de idade, portanto, fora do período escolar. Ela argumentou que somente dali há um ano entraria no grupo escolar, e aí sim seria alfabetizado.

Ele discordou, e de tanto insistir, o pedido foi atendido. Começava ali, naquele diálogo entre os dois, a minha trajetória como sujeito letrado (aquele que gosta das letras), e que seria a minha chave de acesso a todas as coisas que andam e que rastejam, que estão sobre a terra e acima dela, que mediaria meus namoros, que me apresentaria poetas e historiadores, que a ciência, a mãe maior de todos nós, seria, a mim, apresentada.

Mas o por que da insistência do meu pai em me alfabetizar antes do prazo previsto por pedagogos e professores? A resposta está no comportamento inquieto que eu tinha nessa idade.

Montes Claros, nos anos de 1960, contava com poucas bancas de jornal, mas meu pai, além de amigo de Ruy Hitler que era o responsável pela distribuição do jornal Estado de Minas na cidade, também o assinava, o que dava o privilégio de não precisar se deslocar até a praça Doutor Carlos. E tão logo esse matutino chegava em nossa casa, era acomodado sobre a poltrona do Paculdino, esperando que ele chegasse, na hora do almoço, e antes de degustar a comida, tratasse de devorar as notícias.

Ele só chegaria em torno de 11:45. Esses escassos minutos que dispunha entre a minha disparada da rua para casa e a sua saída da SOLTEC, eram apreciados de uma forma ritualística.

Assim que eu chegava, trocava de roupa, pegava o jornal que estava sobre o sofá e colocava sobre o meu colo. De frente para o sofá era possível ver a televisão bem destacada, e sobre ela, no alto da parede, o relógio.

A expectativa da sua chegada era a mesma todos os dias. Mas nesse dia, dia individual da alfabetização, ele demorou cinco minutos à mais. Mas tão logo chegou, percebi que ele estava entrando pelo jardim devido ao ranger do portão. Ao escutar esse barulho, fitei o relógio e constatei: iria “ler” com ele!

Pretensão. Mas que ele entendeu de forma definitiva. E tão logo chegou até à sala, me enxergou na sua poltrona e, com um gesto com as duas mãos, como um mágico enfeitiçando uma peça para que ela gravitasse, eu levantei do seu lugar, e me postei no piso, bem ao seu lado.

Na medida que ele lia os cadernos, os deixava no chão. Eu os recolhia e passava em revista aquele monte de letras e figuras que tanto chamavam a sua atenção. Até que um certo momento ele não mais colocou o jornal no chão, mas simplesmente entregava cada caderno diretamente a mim, e quando estendia a mão para pegar, num encontro único, nossos olhares se cruzaram e ele, olhando sobre os óculos deu um sorriso, prontamente correspondido pelo filho curioso. Naquele momento eu sabia. Estava “lendo” com ele!

Quando meu pai se dirigiu à minha mãe, Laudir Paculdino, e pediu que me alfabetizasse, ele havia percebido o quanto desejava ler também. A partir daí embarquei em uma aventura que não teria mais fim.

Venho de família muito grande (somos nove), e mais do que natural que cada irmão se identifique mais com um outro. No meu caso, Márcia Virgínia Ferreira era a que mais se aproximava de mim. Talvez pelas diferenças básicas. Ela muito falante, eu mais tímido. Ela ligada ao mundo exterior, eu ao mundo interior. Ela livre e eu também!

Por isso mesmo minha mãe, que foi professora primária na fazenda Santa Bárbara, onde meu pai trabalhara um certo tempo em uma empresa de um tio seu, sabia como facilitar o entendimento das letras e palavras, e por isso mesmo, depois de me apresentar todo o alfabeto, tratou de guiar minha mão e meus sentidos para compor a primeira palavra que iria detonar, dentro de mim, uma busca incessante e infinita a procura da leitura. A palavra Márcia foi formada, e tão logo pronta, virei para minha mãe e perguntei: É minha irmã? E ela respondeu: É ela sim!

A partir desse momento estava habitando o mundo das letras, e como vocês vêem, até hoje me encontro nele.

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