Quentão, paçoca, canjica e morte...

Jornal O Norte
16/11/2009 às 12:02.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:17

Haroldo Costa Tourinho Filho


htourinho@yahoo.com.br


 


*Em homenagem ao bom amigo Edson Luís de Souza, cantor, multi-instrumentista, mulherengo e compositor, que nos permitiu recriar parte de sua caudalosa infância.


 


Querido Edson,


 


Muitos já escreveram do Além... Meu velho amigo Brás Cubas, um deles; Patão, outro, para ficarmos nos dois. Assim como eles, encontro-me em paisagens siderais anos-luz das luas de Vênus... Pego da pena de ouro e passo a relatar.

Aos 19 anos apaixonei-me per-di-da-men-te, digo sem qualquer arrependimento. De conformidade com o figurino de então, casei-me com a eleita no cível e na Santa Madre Igreja e aos 20 fui pai. Só tivemos um filho – você – e vivemos num bembom até a coisa acontecer e precipitar o encerramento de minha curtíssima e malfadada carreira terrena. Como sabe, morri aos 27.

Como se dizia na época, por volta dessa idade amiguei-me, amasiei-me – palavras horríveis, comparáveis a agiota e assassino – com uma beldade dona de pequena mercearia do bairro. Eu, 26/27, ela, 34. Que fogo! Nossos encontros casuais, fortuitos, passaram a se amiudar. Carol não me queria – exigia! Eu, nem tanto. Mas fui deixando o barco correr, a correnteza me levar... Ninguém sabe como isso acontece, mas acontece! A literatura romanesca aí está para atestar. Eu as amava, Marina, sua mãe, e Carol, a amante, sem saber ao certo para qual lado me inclinar. Propus-lhes compormos um trio, uma espécie de ménage, ideia que a legítima descartou com um olhar que ainda me faz gelar. Que mulher! Derrotado em minha sabedoria salomônica, nos separamos e passei a viver com Carol, coabitar.

Ah, como eu sofria com a minha não assistência devida ao pequeno Edson, que ficara aos cuidados da avó materna e cujo talento musical daqui vi desabrochar. Que se cuidem, Dick Farney e Cauby... Afinal, Edson Luís é filho de um trompetista genial. Viva o Edson!

Meu filho, dado à inevitabilidade da morte, é realmente um privilégio Aqui estar, mas, confesso-lhe candidamente e aos possíveis leitores desta missiva (espero mais de um), que gostaria mesmo é de estar aí, na Terra, no quente e na hora! Aqui simplesmente não há querer, prazer, poder, ambição, nenhum sentimento ou emoção. Felizmente, também não há dor... E assim viveremos para todo o sempre, aff! Eterna e enfadonha verdade.

Voltemos ao meu curta, para muitos inverossímil. O fato é que eu adorava canjica. Canjica, aquela iguaria esbranquiçada, meio cremosa, preparada com milho especial, leite de vaca, côco ralado ou aos pedacinhos, açúcar e canela em lascas, uma espécie de mingau. O homem morre pela boca, disseram alhures. Comprovei. Bem, na minha derradeira festa de São João em casa de sua vó, repeti a melhor canjica que até então havia saboreado. Divina! Cá no céu, com o perdão de todos os santos e querubins, só há disponível um manjar-branco insosso, sem calda ou ameixa, sem graça, imitação barata, pirata, da boa e autêntica canjica de origem africana, da Guiné. Afirmam que esta é afrodisíaco, dá tesão, embora por Aqui ninguém, ops, nenhum espírito possa recordar o que vem a ser isso...

Basta de digressões desnecessárias e blasfematórias! Retomemos as cenas que darão corpo e alma a estas linhas. Como disse, você passou a morar com sua amada avó depois que sua mãe e eu nos desentendemos de vez, sem qualquer ação bélica ou coisa que o valha, registre-se. Cada qual seguiu o seu destino. Ficaram-me a saudade e o amor pelo pequeno. Filho que sou de pais separados, ficava a imaginar o que o meu não devia estar passando, embora sob a guarda da boníssima e serena vovó Lourdes. Pero, hijo mio, la nave va, the life goes on, a vida segue seu curso, comme il faut, não é assim?

Oh, naquele dia, ou antes, naquela noite de São João que só post-mortem descobri fatídica, Carol, a amada-danada, me envenenou! Surpreso, o senhor? Surpresa, a senhora? O veneno existe antes do homem, soube Aqui, em profundidade. Morri sem me dar com a causa. Relembro-me vagamente que, depois de dois ou três quentões acompanhados de mancheias de paçoca retirada de uma gamela coletiva, tomei uma segunda tijela de canjica a mim gentilmente servida pela doce Carol... Em seguida a um pé de moleque, degustei uma caneca de café preto, forte, adoçado com rapadura e um biscoito fofão... Hummm, nunca mais... Após simples e frugal e festivo repasto, baforei um inóquo cigarrinho de palha manufaturado pelo amigo Serginho e... dizem que, sorrindo, apaguei. Não me contorci, não verti nada pela boca ou demais orifícios corporais, não agonizei, nada disso. Parti, voei para o infinito feito um passarinho, aboletado na rede da varanda que dá para o quintal da casa. Ficaram-me na retina o brilho já então embaçado da fogueira e o desvanecer da imagem dos dançarinos de quadrilhas, forró e lundu... De imediato, uma sombra cinza, negra, indefinível, veio se adensando, tomando corpo, cobriu tudo e me envolveu... Breu total... E nada mais. Fui-me! Triste e injusto fim!

Ressuscitei (seria eu mesmo) no purgatório, triagem obrigatória e, no meu caso – fiquei estupefato -, rápida escala para o céu. Explico: como não me via incluso em outros pecados graves, ditos cabeludos, meu temor era o de ser julgado e condenado por adultério, concubinato, bigamia... Cheguei a suar frio... Mas, pelo que me foi dado a observar, práticas sexuais não são levadas em conta por ali – mero comportamento animal... Despenam, de forma igual, de tais humilhações, o furto, se consumado com o intuito de se alimentar... Ah, cá nestas esferas tudo é perfeito! Entretanto, matar alguém, seja qual for o motivo, excluídos o estado de necessidade ou algum outro imperativo categórico, ou submeter o próximo a constrangimento físico ou moral, constituem atos imperdoáveis, inafiançáveis – todo o plenário mostra-se não indulgente em tais casos. Daí a sentença inexorável, proferida por algum arcanjo de plantão: fogo eterno! Vi coisas e muitas, ali, que posso testemunhar. Pessoas, para muitos insuspeitas, pré-atiradas ao hades, notadamente genocidas e torturadores – Hitler, Mussolini, Stalin, Mao, o general Custer e outros de menor calibre ainda purgavam aguardando julgamento. Kennedy, o John? Lá estava, na fila interminável... Vietnam? Que coisa!, diria o general McArthur... Crimes outros, bárbaros, porém perpetrados por atores secundários, são julgados sumariamente, pá-e-bosta, ou seja, direto pro inferno! Foi o que pude constatar por ocasião de minha breve passagem, digamos assim, formal, pelo purgatório, uma espécie de passagem pela alfândega... Tudo isso me levou a concluir não ser a burocracia uma invenção de humanos...

Ao cabo, voltemos à causa de minha prematura e descabida morte, da qual só saberia depois. Depois? Sim, inexistem Aqui conceitos de tempo ou de espaço. Tudo simplesmente flui, eterna e celestialmente... Como me fazer entender? Vou resumir: foi sua velha e arguta vó quem atinou com a coisa toda, coisa do diabo, disse-me meu anjo da guarda. Ela, dona Lourdes, com a sua peculiar perspicácia, notou que naquela noite Carol estava mui suspeitosamente carinhosa comigo. Quando ela, sua vó, estava para servir-me a canjica, Carol – desajeitamente – interveio: “a canjica do meu amor, só eu quem dou...”

Como ninguém chegou a passar mal e só eu viria a morrer...

Oh, não sei nem quero mais saber o que aconteceu – fico apenas a pensar se Carol não teria descoberto ou suspeitado de meu incipiente romance com Marly... Nada mais importa, não nutrimos Aqui o sentimento de vingança. Àqueles em que leio o pensamento: “Uai, você não está no céu, onde tudo se sabe?” – respondo: “Nem tudo, meus caros. Ainda estou para deslindar o mistério da Trindade.

Do pai que muito lhe quis e quer,


Antônio de Souza


Oficial Tenente da Banda de Música da Polícia Militar de Minas Gerais

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por