Felipe Rodrigues Pereira
Fiquei sabendo que em Portugal as pessoas quase não comemoram aniversário, o que comemoram muito por lá é a data em que uma pessoa se torna pai ou mãe. Isto é estranho para mim, pois é bem diferente daqui no Brasil, onde as pessoas não se lembram ou não se importam com a data do nascimento de ninguém, ou muito menos quando chega a data em que alguém se tornou pai ou mãe.
Não digo que é estranho por parte do pai, pois só se torna pai quem já sabe no mínimo fazer algo de muita responsabilidade como o sexo, mas eu digo de quem nasce a partir dessa relação, que deveria ser a semente que germinou e nasceu amor. Penso muito nesses frutos que nascem de relações apaixonadas, em que a única pessoa que importa é a outra e mais ninguém, mas... mais ninguém mesmo, pois se mesmo que dessa relação de amor surgir uma terceira pessoa, logo é preciso eliminá-la.
E o que isso tem a ver com data de aniversário? Muito, muito mesmo, pois é nessa data que a pessoa se sente importante, se sente amada, se sente com valor, e querida por muitos, principalmente quando essa criança começa a perceber que a idade está chegando, já está adquirindo discernimento das coisas, e que, afinal de contas, 10 anos para aprender que seus pais não têm o costume de fazer como os portugueses, que comemoram o dia em que eles se tornaram pais.
Essas crianças ainda em conflito com a infância e com o início do entendimento do que realmente é o mundo, ou as pessoas, começam a contar os meses, as semanas, os dias, as horas, os minutos e até os segundos, talvez pensando: “Desta vez vai ser diferente, desta vez minha mãe deve chegar em um balão colorido descendo do céu azul, e com uma boneca linda, dizendo que ela se parece comigo e por isso a comprou pra mim...”
Ou que seu pai vai chegar quando estiver faltando 1 segundo para a meia noite do dia em que se comemora o seu nascimento, e chegaria fantasiado de um super herói, dizendo que ele era o seu protetor e que não precisaria ter medo de nada, porque ele sempre estará lá.
Mas os minutos se passam, as horas também, ela vai e volta ao banheiro umas dez vezes depois da meia noite, escova seus dentes cinco vezes, dá dor de barriga, fica com calor... Para uma menina que acabara de fazer 10 anos, isso não é normal, mas lá está ela acordada, esperando chegar quem nunca veio, os olhos carregados de lágrimas. E dentro do coração apertado, algo que diz: “Você tem de ser forte, é assim mesmo, seus colegas nasceram para ter um pai e uma mãe, mas você não.”
E, olhando tudo isso, eu começo a entender e a pensar em algo sobre nossos corações. Acho que todas as pessoas nascem com um coração de pedra, e a sua passada pela vida vai quebrando essa pedra e fazendo tornar um coração humano, de carne, através das coisas que as pessoas veem. Dizem que o que os olhos não veem o coração não sente, agora entendo o porquê de muitas pessoas não terem sentimentos. É que elas fogem para longe, para que seus olhos não contemplem o choro, a dor, a fome, mas existem pessoas que escolhem não ser cegos a tais fatos.
Hoje, entendo que nunca fui melhor que ninguém e que nunca serei, o que difere uns dos outros é a decisão de enxergar ou ser cego, e quando se enxerga nos sentimos tão impotentes, pois descobrimos que não podemos fazer nada, a não ser olhar e chorar junto, abraçar, ver a dor.
Seria fácil se o problema se resolvesse com dinheiro, daria para trabalhar muito e conseguir isso, ou quem sabe até roubar um banco. Ou, se o problema fosse brinquedo ou diversão, a gente compraria um circo e um parque... mas quando o problema parece ser tão simples, é ainda pior, porque, na qualidade de tio, ainda que consiga ser o melhor do mundo, ainda não inventaram uma máquina que transformasse tios em mães ou em pais, e isso nos cala e nos faz perder a voz, quando queremos fazer a pergunta:
- O que você quer de presente?
Pois, já sabendo que a resposta seria:
- Minha mãe e meu pai...
...é difícil ouvir o soluço de uma criança de 9 anos, em meio a lágrimas e dor, gemendo e gaguejando, dizer:
- Mãe, Mamãeee, quero minha mãe!
Ou ver uma criança se apresentar em uma igreja e, depois de tantos ensaios, dificuldades para se comprar a roupa, ensaios, ir à casa das colegas que vão dançar junto, quando chega o dia tão esperado da apresentação, se deparar com os pais das outras crianças na frente do altar da igreja com suas máquinas fotográficas, com o famoso sorriso Elma chips no rosto e, ao lado, os irmãos dando tchauzinho e fazendo cara de orgulhosos por ter uma irmã dançarina.
Também deve dar vontade de não existir naquele dia em que se comemora o dia das mães na escola, e se faz uma festa e diz:
- É para a mamãe de todos virem, para fazermos uma surpresa para elas...
E quando chega a tia loira lá, começam as perguntas: Mas sua mãe não é aquela morena do ano passado? Sua mãe não é aquela que estava na sua casa? Esta aí que é sua mãe? E, com 9 anos, ter a habilidade para se sair dessa situação não é tão difícil porque ali estão crianças que estão passando por onde todas passaram ou terão de passar um dia. Esta em especial foi matriculada em uma escola em que ela não queria, se pudesse escolher, mas seus pais optaram matriculá-la na escola do abandono e do descaso, na escola em que a vida solitária da família é obrigatória, e a matéria “Chorar sozinha” é algo que se faz na prática e não na teoria.
Doer os dentes é bom quando se tem alguém que sente a dor por ela, mas quando não sabe a quem recorrer e ter de pedir a professora de uma escola pública que faça alguma coisa, ai dói e, se é que existe alma, dói é lá. Afinal de contas, somos o que é a genética dos pais, e se eles não têm almas, por que é que o filho teria? Quem estuda na escola da vida consegue algo muito maior do que boas notas ou notas azuis, ou uma estrela; elas conseguem adquirir uma alma, que nós não nascemos com ela, mas adquirimos ao longo das provas que vamos enfrentando e vamos adquirindo experiência para se deparar com as dores da vida.
E essa alma ensina para alguém que deveria ser professor e não aluno, que ainda que tenhamos sido abandonados, jamais deveríamos abandonar, que ainda que não tenhamos sido amados, jamais deveríamos fazer vista grossa ao amor, e que o maior tesouro não é ser livre para ir aonde quisermos, ou fazermos qualquer coisa que nos dá na telha, mas o maior tesouro que podemos ter é tudo aquilo que não conseguimos olhar. E, como o que não se olha o coração não sente, e, como não se sente, nosso coração nunca é livre do pedregulho que o envolve, e em nome de uma falsa liberdade eles acabam presos no lugar onde nunca deveriam ser, em seus próprios corações.