Ary Penaverde *
Em zona montanhosa, através de região deserta, caminhavam dois velhos amigos, ambos enfermos, cada qual a defender-se quanto possível contra os golpes do ar gelado, quando foram surpreendidos por uma criança semimorta, na estrada, ao sabor da ventania de inverno. Um deles fixou o singular achado e clamou, irritadiço:
- Não perderei tempo, a hora exige cuidado para comigo mesmo, sigamos à frente.
- Amigo, salvemos a criança, é nosso irmão em humanidade.
- Não posso - disse o companheiro enfurecido - Sinto-me cansado e doente. Este desconhecido seria um peso insuportável, temos frio e tempestade, precisamos ganhar a aldeia próxima com urgência.
E avançou para diante em largas passadas.
O homem de bom sentimento, contudo, inclinou-se para o menino estendido, demorou-se alguns minutos encostando-o paternalmente ao próprio peito e, aconchegando-o ainda mais, seguiu adiante, embora devagar.
A chuva gelada caiu, metódica, pela noite adentro, mas ele não abandonou aquele ser indefeso; levava-o junto ao peito.
- Com enorme surpresa, porém, não encontrou ali o colega que o precedera.
Depois de muito tempo, atingiu a hospedaria do povoado que buscava.
Com enorme surpresa, porém, não encontrou ali o colega que o precedera.
Somente no dia seguinte, depois de minuciosa procura, foi o infeliz viajante encontrado sem vida, num desvão do caminho alagado.
Seguindo com pressa e a sós, com a idéia egoística de preservar-se, não resistiu à onda de frio e tombou encharcado, totalmente congelado, enquanto que o companheiro, recebendo, em troca, o suave calor da criança que sustentava junto ao próprio coração, superou os obstáculos da noite gelada, guardando-se de semelhante desastre. Descobrira a sublimidade do auxílio mútuo, da caridade.
* Escritor e criador de bicudos