Wagner Rocha
Não é fácil escrever sobre poesia, ainda mais quando se trata de um trabalho multifacetado como o que se apresenta neste Parangolivro. Qualquer coisa que mencionarmos aqui será apenas uma tentativa de aproximação, um desejo de compreender o que está em jogo nessa misteriosa experiência humana.
Sim, não há dúvida de que a poesia é um mistério que inquieta o coração do homem, um grito que ecoa na grande noite do mundo, uma catarse e, ao mesmo tempo, algo que se encontra fora de qualquer conceituação.
O que dizer, portanto, sobre o conteúdo denso que percorre esta obra do poeta Aroldo Pereira? A princípio, faz-se necessário registrar que se trata de uma coletânea que possui um intenso diálogo com os embates existenciais do homem comum, do cidadão que nasce/morre a cada dia preso às circunstâncias opressoras do cotidiano.
Aliás, a poesia de Aroldo Pereira, mesmo em seus livros anteriores, como, por exemplo, em Cinema bumerangue (1997), é marcada por uma necessidade de mexer nas feridas sociais, de traduzir em versos toda a dor de uma humanidade que atravessa grandes conflitos. É o poeta que não se cansa de reivindicar, através da sua relação com a linguagem e com a vida, um lugar para o homem na ordem das coisas.
Parangolivro se constitui, sem dúvida, como um instrumento de propagação desse humanismo singular que vai se desenhando na trajetória de Aroldo Pereira, um poeta militante ou um militante poeta – acreditamos que a ele cabem estes dois termos – que ousa fazer da sua poesia uma prática política.
Trata-se de um lírico disposto a apaziguar as tempestades do mundo, um lírico no auge da globalização (para lembrar o que salientou Walter Benjamin a respeito de Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo). Porém, um lírico dotado de consciência crítica, ou, por que não dizer, de consciência revolucionária.
negro pobre poeta
(...)
ler e descobrir
escrever bater com a cabeça
(...)
viver longo
cada instante
olhar os filhos sem fim
caminhar sob o sol
fugir do inferno de si
Os fragmentos acima fazem parte do poema-título que abre esta coletânea (“Parangolivro”). Através dele Pereira nos aponta, sobretudo ao justapor as palavras “negro pobre poeta”, a necessidade de ressignificação do modo como concebemos o mundo e a existência.
A poesia torna-se uma referência ética e étnica, um apelo a favor das minorias sociais, uma possibilidade de orientação da vida, um espelho por onde nos enxergamos. Assim, somos levados a refletir o que T.S. Eliot chamaria de “função social da poesia” numa conferência de 1943 do qual nos possibilita entender que vida e poesia não se separam.
Aqui o poeta situa-se diante do seu ofício (“escrever bater com a cabeça”), o ofício de sentir com a razão, de produzir pensamento, de “fazer uma experiência pensante com a linguagem” (Heidegger), de intervir com a sua prática poética na estética gritante da realidade. A poesia, para ele, é algo que ontologicamente encontra-se enraizada em sua condição humana. É o elo de aproximação entre o Ser e as coisas, o homem e a vida (“fugir do inferno de si”).
Além disso, o exercício reflexivo presente nos poemas que compõem este Parangolivro associa-se a outros elementos dissecados pelo poeta. A poesia é imagem-som-ruído-invenção-verdade. É um dizer múltiplo, polifônico, intersemiótico.
O título da obra, Parangolivro, já nos remete a esse caráter dialogal da poesia de Aroldo Pereira. Trata-se de um neologismo criado a partir das palavras “parangolé” e “livro”, dois expressivos objetos artísticos. Um parangolé-para-ornar-o-corpo: a dança, o movimento. Um livro para “ler e descobrir”. Um parangolé com suas cores e ritmos, oiticicano-brasileiro-subversivo. Um livro feito paisagem, assim como o êxtase de um João Cabral diante da arte de um Juan Miró.
Poesia e artes plásticas se vêem nesta obra totalmente entrelaçadas, como também a música, o cinema e a performance. São inúmeras as vozes que emergem deste Parangolivro. Inúmeras as referências. Isto nos sugere que o poeta, quando está criando, nunca está sozinho. Aqui são evocados nomes-coisas, personagens reais, lugares-acontecimentos. Um mundo se abre dentro desta tela-linguagem. Um mundo pictórico ao alcance da mão que se lambuza com a tinta das palavras. Um mundo-Raimundo Colares, um mundo-tantos-outros que atravessam as inquietações do poeta, as imagens quebradas, o barulho.