Pão

Jornal O Norte
Publicado em 08/05/2006 às 12:02.Atualizado em 15/11/2021 às 08:34.

João Caetano Canela



Trata-se de uma mulher comum que passa por nós na rua. Olho-a distraidamente, sem qualquer interesse.Não a conheço.Mas minha esposa a conhece e a cumprimenta, com cordialidade. Depois se volta para mim e me informa, em tom quase solene:



- É a nova vizinha, a mulher do pão...



Ora, leitor, eu ainda não tivera o prazer de conhecer pessoalmente essa mulher, essa admirável vizinha, que desde que se mudou para uma casa próxima, recentemente, vem provendo a minha mesa com o pão insuspeito e saboroso que faz e comercializa.Vive disso, de vender o seu pão, o qual eu compro todos os santos dias, embora tal pão, porque delicioso e honesto, não tenha preço que pague.



Muitos homens comem do pão industrial, do pão adulterado que padeiros inescrupulosos amassam e padarias desonestas vendem. Outros, sequer comem desse pão vil que os maus padeiros amassam, pois comem, coitados, de outro pão muito pior: do pão que o diabo amassou.Eu não.Privilegiado, aqui declaro e aqui ostento que como do melhor pão, do bom e confiável pão que a minha vizinha faz.



Dirá você, leitor, não dando maior importância ao que digo, que nem só do bom pão vivem os homens.Ao que eu, retrucando, direi: nenhum homem de boa fé e de bom gosto vive bem sem um bom pão, até porque, quem come do mau pão sempre acaba comendo, de uma certa maneira e sem o saber, do pão que o diabo amassou.



Que falsifiquem o uísque, que falsifiquem os cds, que falsifiquem os artigos de marca e os objetos de arte, que falsifiquem tudo, tudo, menos o pão.Dai-nos hoje, Senhor, um honesto pão nosso de cada dia, sem o que jamais entenderemos a santa razão da terra e o milagre do trigo puro que ela nos oferece.



“Tomai, comei, isto é o meu corpo” – assim um dia disse o Cristo, oferecendo o pão abençoado aos discípulos.



Comamos, pois, desse pão, sagrado e consagrado, que hoje continua a ser oferecido às boas ovelhas do rebanho do Senhor. Mas comamos também do pão profano - com manteiga, com salame, com maionese, com carne, com ovo frito, enfim com alguma coisa, ou mesmo sem coisa alguma, e apenas puro - desde que seja um pão honesto.



Volto o olhar, ainda mais uma vez, para mulher do pão.Vejo-a virar a esquina e se perder, acolá.E então uma preocupação me assalta, inquietando o meu já inquieto coração.Oh, não vá essa mulher se perder por aí, não na rua, mas na vida, como muitas criaturas humanas têm se perdido, e cair na tentação de aumentar seu lucro, passando a fazer doravante um pão fraudado de má qualidade. Oh, não. Que ela, com ética e santa correção, continue comprometida tanto com seus princípios quanto comigo, que sou seu entusiasta consumidor, pois somente assim poderei dizer a um amigo cético que freqüenta a minha casa que nem tudo está perdido neste nosso mundo, conforme ele afirma.



Sei que esse meu amigo, porque incrédulo dos seres humanos e daquilo que fazem, duvidará do que lhe digo.E é possível que se ria de mim, até com certo deboche. Então, repartirei o meu pão de cada dia e oferecerei a ele um fatia do mesmo, a fim de que prove dele e comprove a veracidade das minhas palavras. Ao que ele, depois de saboreá-lo, com certeza estremecerá, de espanto e prazer, mal acreditando no que vê e no que come. E ao que eu, por minha vez, direi a ele: tomai, comei sem susto e espanto, pois este é um pão insuspeito que une os homens e resgata a probidade humana.



Oh, não vá essa mulher se perder por aí, porque enquanto ela estiver fazendo um pão honesto, na terra, acreditarei que Deus, por Sua vez, estará também desenvolvendo, no céu, o santo trabalho de iluminá-la, cuidando de não permitir que se perca pelos ínvios caminhos da ambição. E enquanto for assim, enquanto Deus e essa mulher extraordinária estiverem a postos, hei de ter, caso não uma cálida esperança no coração, ao menos um poderoso argumento para retrucar o meu cético amigo, quando ele afirmar, com uma nota de ironia e talvez amargura na voz, que tudo no mundo atual é uma grande mentira.



Cultivemos o trigo. Separemos o joio do trigo. Tomemos o trigo e façamos o pão, corretamente. Que seja assim também com os seres humanos. Cultivemos os homens, separemos aqueles de boa vontade e façamos o cidadão, corretamente. Eis a receita, eis o segredo. No mais, tudo virá em decorrência disso, do bom pão e do bom cidadão.



Sentados à mesa, reunidos fraternalmente, agradeçamos ao céu o bom pão que é servido a nós, bons cidadãos que fizemos por merecê-lo.Oremos.Deus existe na virtude humana.

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