Os poetas vêm do céu

Jornal O Norte
11/11/2009 às 08:22.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:16

Waldir de Pinho Veloso


Escritor, professor universitário e advogado

O meu envolvimento com a literatura é de longa data. Razão por que tenho motivos de, com a graça de Deus, ter conhecido muita gente – e gente da melhor qualidade – neste período. O interstício que intermedeia os últimos dias de 1978 e a presente data é, para mim, de mergulho na literatura. E em conjunto com os amigos que do fato vêm.

Em época intermediária, eu escrevia regular e semanalmente para um jornal belo-horizontino com circulação em todas as Minas Gerais, extravasando para alguns outros Estados brasileiros. Nessa época, a literatura me fez conhecer um jovem de nome Edílson Marques da Silva. Ele próprio gostava de se apresentar como Édi. Mostrou-me um conjunto de estórias em quadrinhos, com desenhos e argumentos seus. Retratava a violência de um bairro que de imaginário tinha pouco. Até as ruas com nomes reais do seu bairro apareciam em suas narrativas. Falava muito de lutas entre gangues e, como temas centrais, havia mortes. Muitas mortes de adolescentes e jovens. O próprio Edílson, um adolescente.

Era ficção, é verdade. Mas, hoje, é a realidade dos grandes aglomerados urbanos. As estórias de Édi, com certeza, servem como prelúdio de um tempo que o porvir fez com que chegasse. E chegasse com a violência que ele retratava como imaginação, ficção, criação literária.

Quando tive oportunidade de ler o que Edílson escreveu, em termos de poemas e de estórias em quadrinhos (que, como jargão do setor, são chamadas de HQ, que seriam as iniciais de Histórias em Quadrinhos, embora não sejam histórias e, sim, estórias) escrevi uma crônica sobre o autor e sua arte. A publicação se deu no jornal referido. Utilizei como título “Os Poetas vêm do Céu” e, em longa exposição, foi-me possível transcrever alguns versos de Edílson Marques da Silva e dizer que ele escrevia bem. Era a fundamentação do que eu falava. Até mesmo porque não é aconselhável escrever sem mostrar a prova do argumento.

O tempo passou e cravou-se de intempéries. As dificuldades alheias à minha vontade, aliadas ao fato de a cidade de Montes Claros ter cerca de quatrocentos mil habitantes fixos e tudo se tornar longe e inacessível, impuseram-me silêncios sepulcrais.

Muitos anos após, está em minhas mãos um trabalho acadêmico que o mesmo Edílson Marques da Silva elaborou como requisito para obtenção de créditos na disciplina “Práticas de Ensino e Estágio”, que a Professora Rita Tavares leciona na Universidade Estadual de Montes Claros. Sim. Edílson Marques da Silva chegou à Universidade. E, mais do que chegar, concluiu o curso de graduação. Como trabalho escolar, Edílson produziu um Memorial.

O trabalho escolar foi por Edílson confiado à sua amiga Jussara Christine Silva que está nos últimos minutos do Curso de Direito da Faculdade Santo Agostinho. Jussara é vizinha de Edílson. E me emprestou o Memorial, por uns meses, para que eu fizesse uma meticulosa leitura.

No Memorial, Edílson começa narrando – dando valor à origem da palavra e, assim, puxando pela memória para produzir o documento – seus dias iniciais na vida escolar. E o fez ano a ano ou, pelo menos, etapa a etapa. Destacou as dificuldades, os professores elogiáveis, os professores a quem a turma – e ele, também, às vezes – chamava de “bruxa”, “linha-dura”, “víbora”. Também disse dos colegas de sala. Principalmente, coloriu as letras ao falar de meninas-moças que estudavam com ele. Não deixou de se lembrar dos irmãos de sangue e das aventuras que enfrentaram. Muitas delas, em face do terrível fato de ele e seus dois irmãos terem dificuldades visuais.

A dificuldade de enxergar trouxe diversas e más consequências para Edílson. Pessoas iguais a ele até desistiram da escola. Ele superou as dificuldades: alguns colegas liam o que estava anotado no quadro-negro e, assim ele copiava. Ele reconhece, com gratidão, o apoio (e chega a dedicar o Memorial a quatro pessoas que “de certa forma, foram meus olhos”). Alguns professores o ajudavam. Também recebem o reconhecimento explícito, com citações nominais. E diz que uma professora lhe negou ajuda especial em sala de aula, alegando que “vai prejudicar aos outros”. No vestibular, teve tratamento especial: a prova era impressa com letras maiores e ele ficou sozinho, com duas fiscais, em uma sala.

Dentre outras narrativas, ele destaca que em fase escolar inicial tinha grande amizade por uma mocinha chamada Teodora. Linda, doce, ímpar são os adjetivos para Teodora. Era uma grande amiga e pessoa sempre presente ao seu lado. Dez anos após, Edílson fazia cursinho preparatório para o vestibular e uma das suas novas colegas procurou por ele e “se aproximou e conversou comigo. Levei dias para reconhecê-la. Isso realmente dói”. É que, com reduzida visão, Edílson não acompanhou a evolução da voz e do cheiro da amiga Teodora (ele não explica, mas estes são métodos bons de reconhecimento quando a visão é pouca). Isso, certamente, acentuou a distância do tempo.

O Memorial descreve também o processo de seleção para a Unimontes e o próprio curso de Pedagogia. Não deixa de reconhecer os colegas de sala e o apoio que recebeu dos pais, irmãos e amigos.

Edílson Marques da Silva concluiu o Curso. Agora, o mundo o espera. E ele se acha, hoje, mais qualificado para ver o mundo. Especialmente porque o conhecimento é a sua principal visão.

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