João Caetano Canela
Médico e escritor
Ontem fez um dia feio, frio, nublado. Até ventar forte, ventou. Mas hoje, sábado, faz uma esplêndida manhã, que canta nas coisas e nas criaturas do mundo. No céu azul, limpo de nuvens, brilha um sol viril que aquece a terra e a incendeia com a sua luz. E assim - porque tocadas por esse sol matinal do sábado - as mulheres saem tanto dos lares em que se recolhiam quanto do torpor em que se encontravam, e se assanham nas ruas.
Também saio de casa, pois preciso resolver algo. Só que, ao descer do carro numa rua central, um amigo me intercepta, a propósito de contar-me algo a respeito de aves (ambos apreciamos pássaros). O que esse amigo está fazendo naquela esquina? Ia perguntá-lo, mas ele, que me fala entusiasticamente de uma exposição de pássaros que viu na capital, não me dá a oportunidade de abrir a boca.
Ele fala e eu o escuto, mas o faço distraidamente, pois a minha atenção está voltada é para as mulheres. Ah, as mulheres, que são muitas e diversificadas nesta engalanada manhã de sábado. Parado ali na esquina eu as vejo excitadíssimas, elas que entram e saem das boutiques, num ir e vir que alegra tanto a rua quanto a nós que temos olhos para elas. Ah, as mulheres com a sua volúpia de comprar! Pois que comprem e esgotem os estoques das lojas, que não hei de impedi-las, mesmo porque as suas contas a pagar não recairão sobre os meus ombros.
Meu amigo ainda está a falar de ornitologia, precisamente de um pássaro que viu outro dia em um programa de televisão Segundo me conta, trata-se de uma espécie cujo macho desempenha um impressionante ritual de conquista durante o acasalamento - quando, empavonado e cantante, voeja em volta da fêmea, a fim de impressioná-la e convencê-la a se entregar a ele. Estou curioso quanto a esse pássaro, mas confesso que é outra ave que me interessa no momento: uma bela garça branca, na verdade uma garça real, que pousou na calçada...
Pesca? Claro, pois é ave pescadora. Delgada, dona de aparência delicada e de pele muito alva, procura se passar por frágil e inofensiva. Não é nem uma coisa nem outra. E pesca ali, atrevidamente, com um vestido que, justo e curto, revela suas formas surpreendentemente generosas para uma ave esgalga. Ah, eu conheço essas garças, essas falsas garças magras que se dissimulam assim – só para enganar os incautos que não sabem quão exímias pescadoras elas são...
Mas e aquela ave que, a ruflar asas, desce ali? Uma pomba? Sim, sim, uma pomba morena cujo vestido tomara-que-caia permite que eu lhe veja as belas espáduas nuas. Meiga como toda columbiforme. E, assim como toda columbiforme, também arredia e assustadiça. Ora, quem quer observar uma morena-pomba não fala xô, sob pena de espantá-la. Guardo silêncio, portanto, já que não quero que fuja. Não, não vá essa pomba morena voar para longe, sem que eu ao menos a observe melhor. Mas, oh, ela se assustou - possivelmente com algum olhar concupiscente que um transeunte possa ter-lhe dirigido -, e voou de repente, antes que eu pudesse avaliá-la melhor. Oh, eu queria tanto escutar os seus arrulhos...
Vá morena-pomba, vá para o seu pombal, que eu fico com essa canária que de repente pousou diante de m. Não, não é uma monogâmica canária da terra que, constrangida, ali se encontra apartada do seu macho. Nada disso. É uma exótica canária belga, liberal e talvez libertina, que anda sozinha e não conhece inibições. Trêfega canária, de terras da Bélgica, que usa blusa de decote ousado e adora exibir o colo macio e salpicado de sardas! Ah, eu, que já mexi com criação de belgas, conheço essas jovens canárias, sei de seus pios e de seus sestros...
Perco a belga de vista. Não tem importância: já é tempo de dar maior atenção ao meu amigo ornitólogo, que por sinal está se despedindo de mim com a recomendação de eu não deixar de ver o programa de que me falou, assim que a televisão repeti-lo. Prometo-lhe que não deixarei. Mas por que o meu amigo ainda não se foi? Bem, ele está tentado a me confidenciar uma coisa. E, afinal, o faz:
-Eu adoro ficar olhando mulher bonita nesta esquina, a pretexto de conversar...
Disse-me isso e riu com malícia. Eu também ri. E ambos rimos de nós mesmos, nós dois ali – dois velhos e ridículos gaviões de bico fraco e garras desgastadas.