O triunfo do egoísmo - por Délio Pinheiro

Jornal O Norte
19/05/2009 às 16:20.
Atualizado em 15/11/2021 às 06:59

Délio Pinheiro


Jornalista e acadêmico de Direito


www.novoslabirintos.blogger.com.br

Quem ainda conserva o hábito de assistir o “Show da vida” aos domingos na Rede Globo, deve ter percebido que está no ar uma série de reportagens conduzidas pelo excelente médico e escritor Dráuzio Varella, que vale a pena. É “fantástico” mesmo. O tema abordado, com clareza e emoção, é o da doação de órgãos no Brasil.

Um fato que aconteceu aqui mesmo, em Montes Claros, fornece elementos suficientes para corroborar a tese de “doutor Dráuzio”, de que o sistema de coleta de órgãos no Brasil beira o amadorismo. Por essa razão, criam-se dificuldades que impedem que a fila ande e que mais cidadãos redescubram o prazer da vida, sem hemodiálises, sem balões de oxigênio e mesmo sem escuridão.

Vamos aos fatos: uma cirurgia para tentar aniquilar um câncer ceifou a vida de um cidadão que veio se tratar em Montes Claros. Antes mesmo da viúva e de outros familiares serem avisados da morte do paciente, já que estes se locomoviam do hospital até a residência onde aconteceram os fatos a seguir, o MG Transplantes entrou em cena e propôs à família enlutada que autorizasse a doação de córneas do morto, única doação possível neste caso.

Apesar da dor lancinante, os familiares concordaram e um formulário foi assinado por eles autorizando o procedimento. Em casos assim, o tempo é um fator determinante para que a eficácia do órgão seja mantida, após o processo que o possibilita “reviver” em outro organismo.

Passados alguns minutos, entretanto, o mesmo carro do MG Transplantes parou em frente à casa dos familiares, e a funcionária, visivelmente contrariada, foi logo perpetrando um gesto que deve acontecer com alguma freqüência. Ela rasgou, diante dos olhos incrédulos dos familiares, a autorização da família para a doação das córneas. “Não há o que fazer. A funerária não deixou remover o corpo”, foi essa a justificativa dada pela moça.

É isso mesmo. Talvez com receio de que outra funerária pudesse “roubar” o corpo após o procedimento ou por alguma outra razão absolutamente canhestra e desprovida de humanidade, a funerária não permitiu que um órgão público, o citado MG Transplantes, fizesse a coleta das córneas, condenando um cidadão, o primeiro da fatídica fila de espera, a viver mais alguns dias, ou meses, imerso nas sombras.

A única notícia boa nisso tudo, é que dessa vez mexeram com a pessoa errada. A minha fonte é uma conceituada advogada que promete não deixar essa história passar em branco. Um ajustamento de conduta deverá ser solicitado a todas as funerárias de Montes Claros para que situações como essas nunca mais ocorram, e que famílias como a desse senhor, que sucumbiu ao câncer, possam se vangloriar de seus gestos nobres, sem precisar se defrontar com atos tão antagônicos.

Por fim uma reflexão, que nos chega pinçada da lavra de Descartes, e que deve ser dirigida a pessoas que concebem atos avarentos como este da funerária: “Não ser útil a ninguém equivale a não valer nada”.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por