O sertão do perigo: Quilombolas e facínoras no Norte de Minas (século XVIII)

Jornal O Norte
Publicado em 22/08/2008 às 16:26.Atualizado em 15/11/2021 às 07:41.

Aparecido Pereira Cardoso


Tatiane Pereira Oliveira



 


Em 1732, moradores das Fazendas Riacho e Canabrava, situadas “na beira do Rio São Francisco na parte da Capitania Geral da Bahia” encontraram ao longo de uma das estradas que cortava a região um corpo em pedaços, em tão lastimável estado “que foi necessário ajuntarem-nos para enterrar”. O crime não foi averiguado pelos homens responsáveis pela aplicação da justiça no sertão, correndo apenas a “voz e fama” de que o corpo encontrado era do comboieiro de fazenda seca de nome João Alves, que havia deixado “o Arraial das Pedras de Salvador Cardoso” e que este mandou seus escravos o seguirem “passando publicamente pelas fazendas” ao longo do caminho “armados para o irem matar como mataram no distrito [da parte] da Bahia”, levando os “delinqüentes” nesse crime “melhor de sete mil cruzados em dinheiro”.



Crimes como esse eram comuns no sertão, o que faz parecer que a região fazia jus a todas as imagens e representações com que colonos e autoridades coloniais e metropolitanas desenhavam a região. A crueldade dos facínoras sertanejos apontavam o sertão norte mineiro enquanto lugar “onde se suced[iam] coisas absurdas”, “horrores que em toda a parte me rebentam nos ouvidos, que fazem gemer a natureza e temer um País, onde se desconhecem o respeito da justiça e subordinação às Leis Soberanas”, assim descreveu uma autoridade da Vila de Paracatu ao governador da Capitania em dezembro de 1798.



As notícias que chegavam a Lisboa por meio dos Ouvidores descreviam o espaço sertanejo como lugar aonde “freqüentemente se comet[iam] crimes sem temor da justiça divina e humana”. Um magistrado baiano “para dar notícia das partes por onde t[inha] andado” a Sua Majestade apontou os crimes mais comuns cometidos no sertão e os momentos de perigo que passou quando lá esteve.



Alguns dos itens por ele descritos demonstram toda a sorte de perigos: “pelos caminhos que seguem junto ao rio São Francisco se tira[vam] muitos ouros furtados aos direitos reais, sem se poder evitar este descaminho por causa dos rebeldes [que têm] o amparo dos régulos e falsos a Coroa”. Para se armar tocais, roubar e matar os potentados tinham ao seu lado “pessoas vagamundas (sic) por si, ou apoiadas [pelos] ricos e poderosos, muitos mandados por estes, e outros mandam escravos que tem por valentões”.



Por fim o magistrado relatou: “assim vive a maior parte dos moradores dos sertões, a lei da natureza sem atenderem as consciências, fazendo muita usurpação dos bens alheios, principalmente [em] fazendas de gado que estão pelas beiras das estradas por onde passam as boiadas e a cavalarias magras, os usurpam os assistentes nas ditas fazendas, uns por si e outros por ordem dos donos; e finalmente os que mais furtam mais engrossam em cabedais; e como estes são mal adquiridos muitos lhes confundem a espíritos malignos e diabólicos”.



Esse quadro de violência envolvia em sua maioria, segundo Carla Anastasia, “previsibilidade e impresibilidade”, o que tornava “mais difícil a normatização” da região. Ainda segundo a historiadora, as áreas afastadas da região mineradora, como o Sertão do Rio São Francisco, localizado no norte de Minas, foram regiões onde a autonomia e/ou ausência de autoridades e o menor grau de institucionalização política possibilitaram a generalização dos atos de violência. Esses espaços foram considerados por ela como áreas de non-droit, ou seja, “zonas nas quais a arbitrariedade era a regra, em que os direitos costumários e a justiça não eram reconhecidos pelos atores sociais”. No norte de Minas daqueles tempos a violência era algo endêmico, característico das relações socais, assinala a mencionada historiadora.



A proteção dada aos facínoras pelos fazendeiros foi uma característica marcante da sociedade sertaneja mineira do século XVIII. Servindo de capangas e constituindo grupos armados, estavam eles prontos para agir sob ordens do seu protetor. Exemplo disso foi o bando que se constituiu na Fazenda da Tábua, situada nos confins do sertão e da Comarca do Sabará em 1767, na região de Matias Cardoso e Manga.



Os crimes, mandos e desmandos dos bandidos acoitados pelo dono da Fazenda da Tábua chegou aos ouvidos das autoridades de Vila Rica. As notícias revelaram que o doutor Miguel Nunes Viana (herdeiro de Manuel Nunes Viana), proprietário dita fazenda “incorporado com os seus sequazes, que eram homens facinorosos” viviam na naquela região “como régulos, fazendo-se pelas mortes e violências que tinham executado, o terror dos povos e das mesmas justiças”; o governador Conde de Valadares despachou mandados de prisão contra os ditos potentados para serem cumpridos pelos militares do sertão, que por medo “não quiseram [se] expor a execução delas, receosos do poder e da inumanidade dos referidos régulos que, unidos em grande corpo e armados, se faziam temidos”.



Não surtindo efeito as ordens expedidas, resolveu o governador mandar que entrasse uma esquadra de soldados pagos e auxiliares na Fazenda da Tábua “não só para se prenderem os que nela se achassem, mas também para fazer acessível às justiças para o futuro”. Comandados pelo Tenente-coronel Francisco Martins Ferreira, os militares prenderam todos os moradores da Fazenda causando nela vários estragos, desarticulando assim um território de mando que causava danosos prejuízos “ao sossego público”.



Sob um sol escaldante ou no escuro da noite fria, o sertão era zona de perigos, de índios flecheiros, assassinos cruéis, negros quilombolas, de tocaias, assaltos e mortes à beira de caminhos, trilhas, picadas e veredas que se emaranhavam em meio ao cinzento do cerrado e caatinga...  desordem... medo...  Os homens que saíam em viagens pelos caminhos do sertão, as faziam sempre “com cautela e precaução, levando sempre nestas para suas defesas pistolas, bacamartes e espingardas para se livrarem das revoluções dos transgressores”.



O sertão norte de Minas Gerais também foi espaço de constituição de quilombos. A Carta patente de Capitão do mato passada a João Gomes de Mello em 12 de fevereiro de 1754 assinala a existência de quilombos na região, mais especificamente “... no lugar do sertão chamado o Brejo do Salgado além de São Romão do distrito dessa Capitania se acham vários negros aquilombados, os quais faziam grandes malefícios por cuja causa o elegeram Capitão das entradas do mato e Capitão do dito distrito”. Dois anos depois da nomeação de um Capitão do mato para o Brejo do Salgado, os negros continuavam a fazer desordens na região. “Nos distritos do sertão do Rio São Francisco se tem juntado grande quantidade de negros fugidos os quais continuadamente andam cometendo assassinatos, assaltando fazendas e estradas de que tem feito repetidas queixas os moradores daquele continente pelos excessivos roubos que experimentam”.



Mas seria o norte de Minas um vazio de poder do governo português? Os testemunhos da época nos levam a esse raciocínio. Mas alguns prepostos do rei estavam atuando na região, poucos eram eles. Eram os respeitados potentados criadores de gado e donos de vastas propriedades. As insígnias de autoridade os tornavam mais poderoso que já eram. Cometiam crimes e saíam ilesos. Os militares, independente da graduação se envolviam em assassinatos e corrupção, como os que ocorreram na Fazenda Jenipapo localizada “no rio São Francisco da parte que chamam de Pernambuco”, onde seu proprietário o Capitão Luiz de Cerqueira Brandão; homem que deu em 1736 “demonstrações de fidelidade e exemplo no serviço del Rei”, pelo seu “poder e abonação” quando eclodiram os Motins do Sertão, apareceu em 1732 “cometendo alguns malefícios, a maior parte deles ocultos”. O citado “vassalo fiel” “açoitou um escravo que por nome não se perca; rigorosamente [o Capitão-mor] lhe cortou as orelhas e os nervos dos pés da parte de trás, e assim o estr


opiou dos pés” e dando continuidade ao castigo “o ferrou rigorosamente com as marcas dos gados” ficando depois a suspeita de ter o matado porque o dito escravo “não apareceu mais”.



De outro crime cometido por Cerqueira Brandão podemos apontar a fragilidade e venalidade dos homens responsáveis pelas instituições judiciárias. Depois de ter “açoitado o traseiro de um homem branco” apareceu um outro “em uma de suas fazendas”, morto “com a língua cortada e metida no lugar do membro viril e o membro cortado e metido na boca”. Deste crime resultou apenas a abertura de uma devassa por parte do Juiz do Julgado do Papagaio “e que esta se queimou por duzentos mil réis que se deram ao escrivão”.



As autoridades setecentistas assinalaram que a situação de insegurança e os contínuos crimes cometidos no norte da Capitania de Minas Gerais estavam relacionados tanto em relação à distância da região com os centros de poder como ao pequeno número de autoridades para a administração da justiça ali presentes.  Mas o outro aspecto é dado por essas autoridades um relevo maior: a índole dos sertanejos em não reconhecer a autoridade régia personificada nos seus funcionários. Os raios de poder que partiam de Lisboa chegavam muito fracos ao norte de Minas; as pálidas luzes do poder e da ordem pouco podiam contribuir para o ordenamento daquela sociedade. Essa é a idéia do magistrado José de Sá Bettencourt Acíoli em 1799: “Quase todo o sertão que fica nas extremidades das capitanias da Bahia, Minas Gerais, Goiases e Pernambuco sofre grandes incômodos pela falta da administração da justiça, por causa dos longos caminhos e pela mesma razão: o respeito da régia autoridade nestes lugares é bem à semelhança da luz, cujos raios são tanto mais fracos quanto maior é a sua distância do foco”.



[FONTES E BIBLIOGRAFIA: Arquivo Nacional Torre do Tombo/Lisboa – Coleção Manuscritos do Brasil. Livro 10, fls.222-225v. Arquivo Público Mineiro – Seção Colonial/Secretaria de Governo, Códice 114, fl. 2; Caixa 29, doc. 5, fls. 4v; Caixa 41, doc. 07, fls. 3v-4. ANASTASIA, Carla Maria Junho. A Geografia do Crime: Violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005; COELHO, João Teixeira. Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais [1780]. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1996].

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