O pum da discórdia

Jornal O Norte
Publicado em 10/12/2010 às 15:51.Atualizado em 15/11/2021 às 06:46.

Helder Caldeira (*)



Na semana passada, um jovem editor da enciclopédia virtual Wikipédia me pediu socorro. Precisava da minha ajuda para encontrar fontes fiáveis que corroborassem sua afirmação de que o jornal Estado de Minas deveria integrar a categoria dos periódicos que apoiaram o Golpe Militar de 1964 no Brasil. Apesar da extensa bibliografia oficial e legítima que ele apresentara ao site, alguns de seus editores, moderadores e administradores se recusavam a aceitar a tese, indeferindo sua inserção nos anais da Wikipédia. Aceitei o desafio e li todo repertório de discussão entre ele e os wikipedianos e percebi que, claramente, estávamos diante de uma querela de politicagens.



Ora, a questão não é um mistério para ninguém. O jornal Estado de Minas, desde 1929, é de propriedade dos Diários Associados, império das comunicações fundado pelo excêntrico e extraordinário Assis Chateaubriand. Quando o gaúcho João Goulart assume a presidência da República em 1961, após a escalafobética renúncia de Jânio Quadros, o governo fecha as torneiras de recursos que eram despejados diariamente nos veículos de comunicação dos Associados e compra uma briga federal com seu dono.



Naqueles anos, Chatô (se ele estivesse vivo me espinafraria, pois só poucos e íntimos amigos chamavam-no assim) já estava atolado em uma montanha de dívidas nacionais e internacionais e o monopólio de seu império começava a sofrer com a crescente concorrência ganhando mercado ano após ano. Em especial, o magnata estava pagando um preço alto pelo desejo de tornar-se um mecenas das artes no país. As aquisições de obras vultuosas nas galerias europeias e norte-americanas,  para o acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e outras dezenas de museus que ele estava criando em todo Brasil, escoavam milhões de dólares dos cofres dos Diários Associados.



Ainda no governo anterior, é o presidente Juscelino Kubitschek e o ministro da Fazenda, José Maria Alkmin, quem salvam Chateaubriand com um empréstimo (nunca quitado) da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil (hoje, algo em torno de US$ 30 milhões), para que ele pagasse sua dívida com a famosa Galeria Wildenstein, com sede em Paris e em Nova York. Essas e outras excentricidades (festas, empreendimentos nababescos, luxúrias e afins) estavam deixando suas empresas sob forte risco financeiro. Enquanto ele conseguia mamar nas tetas governamentais, a situação mantinha-se controlada, apesar de tudo. Mas quando João Goulart, fomentado pelo cunhado, o então deputado gaúcho Leonel Brizola, corta-lhe o quinhão, o tempo fecha. Para ambos.



No início de 1963, procurado por militares e governadores interessados em destituir Jango da cadeira presidencial, como o mineiro Magalhães Pinto e o general Olímpio Mourão Filho, Assis Chateaubriand dá ordens a João Calmon, seu principal executivo, para colocar todos os jornais e rádios das Associadas (o que inclui, especialmente, o jornal Estado de Minas) à disposição daquela que chamavam “Cadeia da Democracia”, com objetivo precípuo de combater os ditos comunistas. Durante todo ano de 1963, quase nenhum dos integrantes do governo João Goulart escapou do veneno jornalístico de Chatô e dos Diários Associados. Estava chancelado o apoio ao que se tornaria, em 1964, o Golpe Militar, que depôs João Goulart e levou ao poder o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco.



A querela sobre o assunto dá-se justamente por Assis Chateaubriand, apesar de extraordinário, ser um homem controverso e ferrenho defensor de seu império, fossem quais fossem as circunstâncias. Basta dizer que, apenas quatro meses após o golpe, Chatô rompe com o então presidente Castelo Branco e passa a atacar diariamente o governo dos militares. Ao que tudo indica, os cofres do Tesouro Nacional continuavam fechados à sede dos Associados. Mas o apoio do jornal Estado de Minas e de todos os veículos de comunicação de Chateaubriand ao Golpe Militar é inconteste e há ampla bibliografia sobre o assunto. Indiferentes a tudo isso, e com forte abordagem política, a Wikipédia recusou-se a deferir a proposta de inserção feita pelo jovem editor.



Lamentável. Uma coisa é você ter uma proposta interessante de inovação no universo virtual e criar um enciclopédia que já é o quinto site mais visitado do planeta, fonte dos principais problemas para professores na correção dos trabalhos e solução para os alunos malandros que aderiram à tática do copiar e colar, sem qualquer compromisso. Além disso, os editores, moderadores e administradores do site no Brasil são, em geral, muito jovens. Não que isso seja um problema, pelo contrário. A questão é que eles raramente aceitam referências bibliográficas de livros, jornais, revistas e publicações que não estejam disponíveis em formato digital.



Ou seja, escapamos da “nova censura” ao dizer que o primeiro nome de Lady Gaga é Stefani Joanne Angelina, ou que Justin Bieber nasceu na cidade canadense de Stratford, porque eles são as celebridades do momento, mesmo sem nunca termos visto suas certidões de nascimento, mas sofremos toda sorte de ataques e temos nossas palavras cassadas quando afirmamos que Assis Chateaubriand colocou os Diários Associados à serviço dos golpistas de 1964. Dentre outras coisas, os wikipedianos não aceitaram o jornalista e escritor Fernando Morais, o maior e melhor biógrafo brasileiro, e sua obra – Chatô: o Rei do Brasil, Companhia das Letras, 1994, 736 páginas – como referência bibliográfica fiável. Fazer o que?!



Um pum. Soltemos uma bufa para a Wikipédia. É o que Chateaubriand faria. Ao narrar os episódios que cercam o Golpe de 1964, Fernando Morais conta-nos uma passagem quando o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, procurou Chatô com um documento assinado pelos governadores Miguel Arraes, de Pernambuco, Seixas Dória, de Sergipe, e diversos outros. Queria a opinião do jornalista sobre o manifesto à nação contra o presidente João Goulart. Chateaubriand, combalido por uma trombose, desculpou-se por estar meio afônico e pediu que seu enfermeiro pressionasse seu esôfago para que sua resposta fosse melhor entendida. Em vez de qualquer palavra, soltou um sonoro peido. Em meio aos atônitos presentes, afirmou: “– Essa é a única resposta que posso dar a um manifesto assinado por Seixas Dória e Miguel Arraes.”



Por curiosidade, procurei o pum da Wikipédia. A maior enciclopédia virtual do planeta, dita livre, tem uma definição para flatulência: “ventosidade anal que pode ser ruidosa ou não e tem cheiro fétido”. Em seguida explica: “também conhecida como pum, peido, traque, bufa, triscada, vento, farpa, trovoada, bomba, dentre outros”. Mas o administrador do site avisa logo no início das definições: “esta página não cita nenhuma fonte ou referência”. Confesso que não serei eu a buscar tais fontes. Vai que o editor do momento comeu uma saborosa feijoada ou um belo pato no tucupi?! Farpas a parte, é bom saber que ninguém bufa ou trovoa na Wikipédia. Socorro, Chatô!



(*) Escritor, Colunista Político, Palestrante


heldercaldeira@estadao.com.br

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