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Sexta-Feira,19 de Dezembro

O Mulo e Emilinha, a minha mulinha

Jornal O Norte
Publicado em 31/10/2011 às 18:22.Atualizado em 15/11/2021 às 06:09.

Mara Narciso*





O ilustre montes-clarense Darcy Ribeiro há muito é ícone, e nada lhe acrescenta elogios, muito menos os meus. Ainda assim vou falar do seu livro O Mulo e da aula sobre o escritor, proferida pelo multi-intelectual Wanderlino Arruda. Aconteceu na galeria Felicidade Patrocínio, no dia 23 de outubro, numa conversa de duas horas e meia.



Adulta, li os livros Mayra e Confissões, ambos de Darcy, que em menina eu reconhecia na Praça de Esportes e do Ginásio Darcy Ribeiro. Ouvi dizer que ele era gênio, e teve a sorte de estar em ótimas companhias, por isso fez tanto quanto quis. Foi amigo de Juscelino Kubitschek, ajudou o seu governo em Belo Horizonte e em Brasília, onde criou a UNB, Universidade de Brasília. Quando soube, fiquei impressionada com as grades curriculares que ele elaborou em todas as áreas. Morou com os índios do Xingu por uma década. A minha mãe Milena uma vez me disse que O Mulo do livro era o próprio Darcy, pois não deixou filhos. Eu acreditei.



Dois assuntos norteiam a narrativa desse romance: o sexo e a morte. Li outros livros eróticos, mas enquanto lia esse, imaginava Wanderlino Arruda nos expondo a obra, e de como ele faria isso. Como seria falar desse tema onipresente, explicando em todas as suas cores, cheiros e posições diante de uma plateia de gente séria e com as luzes acesas? Gente, não é cinema não, é clube literário!



O mestre Wanderlino Arruda nos preparou uma magnífica apresentação em power-point, mostrando, com um microfone acoplado ao rosto, que está familiarizado com as novas mídias e tecnologias. Desenvolto, como se brincasse em casa com seu neto, pondo em prática seus ensinamentos dos cursos de oratória, em múltiplos sorrisos desnudou Darcy para nós e a família Ribeiro.



Contou a trajetória de Darcy, falou dos aspectos da sua vida de antropólogo, de senador, de escritor, mostrou fotos dos locais em que viveu, nos apresentou seus amigos índios e políticos. Destacou a importância intelectual de Darcy, o imortal da Academia Brasileira de Letras, de cuja posse foi um dos convidados, juntamente com familiares e Dona Yvonne Silveira.



Falou das outras obras como O Povo Brasileiro, e entrou na vedete O Mulo. Wanderlino afirmou que o livro traz um misto de Darcy Ribeiro, Konstantin Christoff, João Vale Maurício, sendo que o cerne é o seu tio Filomeno Ribeiro. Antes de iniciar a escrita, teve uma prolongada conversa com Filomeno, para extrair dele a sua maneira de pensar, de ver o mundo, de ser o que era: um chefe rural autoritário. Narrada na primeira pessoa, a história do fazendeiro rico se passa em Goiás, nas imediações de Brasília, na década de 1960. Muito do que é dito é costume dos habitantes de Montes Claros. Para provar a sua tese, Wanderlino Arruda capturou palavras, locais e nomes, e deixa ver que O Mulo é de natureza montes-clarense.



Com cuidado, foram escolhidos trechos do livro, a propósito de momentos marcantes e lidos pelo apresentador, com destaque para a filosofia de vida de Fhilogônio Castro Maya, que nasceu sem nome, sem pai nem mãe, foi curador de bicheiras, piolho de soldado, soldado, muleiro, tropeiro e fazendeiro. Algumas partes foram transformadas em poemas, e Wanderlino disse que os versos de Darcy já estavam prontos, porém em prosa, e ele apenas mudou a disposição das frases.



A relação do seu Filó com os negros seria um comportamento contrário ao de Darcy, e esse fato foi usado politicamente para prejudicá-lo. A questão sexual em festa por todo o livro foi falada na palestra com discrição, que seria oposta ao efusivo Darcy. De acordo com o palestrante, o comportamento citado como bodear com as molecas, as meninas negras, bem poderiam ter sido encontros sexuais com as índias, na vida real.



O sexo atinge seu esplendor quando seu Filó conta como se davam seus encontros sexuais com Emilinha, a sua mulinha. A iniciação sexual dos meninos podia acontecer com animais, assim fica pouco claro, no começo se se tratava de gente ou animal. Posteriormente, se sabe que mulinha era um apelido carinhoso para Emilinha, já que o seu Filó era chamado pela negrada de O Mulo. E incontáveis mulheres desfilam pela vida e rede de seu Filó.



A morte é personagem constante, à medida que seu Filó está doente e quer chantagear com Deus para alcançar o paraíso, e para isso deixaria tudo que tinha para um fictício padre, seu confessor. Dependendo do humor do dia ele o chamava de seu padre ou meu padre. A confissão é mera desculpa para contar a história, purgar seus pecados (todos desculpáveis na moral flexível de seu Filó), os crimes e amores de um excêntrico personagem, alguém que não viveu em vão.



O palavreado tem coisas do norte de Minas, e chama a atenção repetições de termos como morraria, gadaria, negrada, pretada e outras vezes negraria. Para Wanderlino, o personagem é forte e palpitante, tanto quanto foi Darcy Ribeiro em sua rica vida, um alguém que nunca se apegou a bens materiais, mas que morava em frente ao mar, numa casa inserida entre a areia e as árvores, e projetada por ninguém menos que Oscar Niemeyer.



Tanto quanto ou mais que O Mulo, Darcy Ribeiro viveu!



*Mara Narciso é médica e jornalista formada


 

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