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Quinta-Feira,15 de Maio

O medo do patrão em dividir o poder com o empregado jornalista

Jornal O Norte
Publicado em 02/07/2009 às 09:38.Atualizado em 15/11/2021 às 07:03.

Neumar Rodrigues


Colaboração para O NORTE



Em janeiro de 2007, neste mesmo jornal, me foi perguntado sobre a importância da formação acadêmica no exercício da profissão de jornalista. Naquela época, já achando que algo de podre estava por acontecer, como acabou acontecendo, me antecipei em algumas observações. Disse que, considerada o quarto poder da sociedade, a imprensa precisa cada vez mais se qualificar e buscar equilíbrio em suas coberturas. Mas uma imprensa qualificada só se faz com bons jornalistas, profissionais preparados, conscientes de sua importância.



A exigência do diploma se insere dentro dessa perspectiva de uma imprensa à altura do nosso tempo. Críticos do diploma costumam dizer que o bom jornalista se forma no mercado, nas redações. Sim, o mercado é escola fundamental para o bom preparo profissional, para o aperfeiçoamento da técnica jornalística, mas o mercado, puro e simples, jamais substituirá uma função básica de qualquer boa faculdade: a formação educacional, a discussão sobre a ética de uma profissão e seus limites, o reforço do bom uso da língua portuguesa, o aperfeiçoamento dos conhecimentos sobre nosso país e do mundo, uma maior discussão sobre o que é uma sociedade justa, democrática e o papel que a imprensa deve exercer para construirmos essa realidade.



É errado criticar a necessidade de um diploma, tomando como argumento a falta de preparo das faculdades para formar bons profissionais, que boa parte delas se encontra desatualizada e desaparelhada, com carência de bons professores e de equipamentos profissionais mais modernos. Tudo isso é muito bom e é importante, mas a função básica de uma faculdade é incentivar uma discussão em nível superior. Aprender a lidar com um equipamento moderno qualquer estudante medianamente inteligente aprende em poucas semanas de trabalho numa redação. Mas uma redação jamais dará a esse estudante o tempo e a oportunidade de aprimorar seus conhecimentos e valores sobre a vida, sobre a ética, sobre o respeito ao entrevistado.



É na riqueza de uma discussão/formação universitária que se forma a consciência de um bom profissional. Pode-se até discutir como fazer para que alguém, que já possua uma graduação possa se formar em jornalismo, cursando apenas algumas disciplinas extras em uma faculdade de comunicação. Mas defender o fim puro e simples da exigência do diploma é não reconhecer o poder, os limites e a responsabilidade social da imprensa.



Não me avaliem como sendo o Profeta das Desgraças. É que já estava estampado na cara da justiça, há muitos anos, o veredicto que seria dado. Era questão de tempo. Ainda mais tendo o aval de algumas grandes empresas de comunicação...



Li um artigo do Professor titular da Faculdade de Direito da UFMG, Antônio Álvares da Silva, sobre essa questão. Ele começa dizendo que, a recente decisão do STF, tornando desnecessária a exigência de diploma para o exercício do jornalismo, contém um erro de análise do mundo e das coisas que nele existem.



A Constituição garante o exercício de qualquer profissão – art. 5º, XIII, mas ressalva que a lei pode impor condições. Esta restrição leva em conta o interesse público da profissão, as exigências técnicas para seu exercício e o significado que tem para a sociedade. Para algumas profissões, estas exigências são óbvias: não se poderia conceber que um prático operasse o cérebro de uma pessoa ou que um pedreiro fizesse o cálculo estrutural de um edifício.



Outras vezes, as restrições não se ligam a impedimentos imediatos. Têm um objetivo mais amplo que diz respeito a interesses morais, políticos e sociais da vida comunitária. Exige-se então que a pessoa tenha formação que envolva valores mais altos e refinados, cuja exatidão não se mede com números, mas com habilitação cultural e humanística solidamente construída. Não se pode permitir que alguém se intitule professor de filosofia, depois da leitura de dois autores, nem de história, depois de estudar dois manuais.



É aqui que se situa a profissão de jornalista. Ele não é apenas um homem da palavra e da redação de textos que trabalha em alguma seção de jornal. A sociedade precisa de informação para tudo. O homem moderno não pode conhecer diretamente a complexidade dos dados e acontecimentos que hoje se agitam na complexa organização social em que vivemos. Por isto, tem que se servir dos órgãos de informação, ou seja, da atividade jornalística, na qual se abrigam conhecimentos técnicos, éticos e políticos, de fundamental importância e significado social, exatamente porque forma opinião e divulga a verdade.



Gay Talese, o grande jornalista americano, disse recentemente, em entrevista à Veja, que o jornalismo é a mais bela das profissões, porque não esconde nem protege um mundo irreal, como acontece muitas vezes com políticos, juízes, militares, empresários e várias outras que, muitas vezes, preservam um mundo que não corresponde à realidade. Pelo contrário, o bom jornalismo expõe a verdade ao povo, com coragem e determinação. Vara a casca dos corporativismos. Desmascara governos, falsidades de ministros e falaciosas versões oficiais. Mostra realidades ocultas e subtendidas, como atualmente faz com o Senado Federal. Só mesmo uma imprensa e jornalistas livres poderiam desempenhar tão grande e significativa façanha.



Portanto, além da formação técnica, do jornalista se exige conhecimento humanístico, filosófico, político e social. Como se pode escrever sobre a reforma do Judiciário, a rebelião do Irã, o problema árabe-israelense, a crise econômica mundial se não tiver



conhecimentos especializados e gerais? Como pode interpretar um fato político e social se não possuir aparato técnico e cultural para a tarefa?



Estes conhecimentos, evidentemente, só se colhem nas Faculdades que são o manancial do saber puro, independente, descompromissado, holístico e completo. O conhecimento humano, principalmente nos dias de hoje, é por demais complexo para ser empiricamente apreendido. Exige esforço, dedicação e estudo. E isto só se faz com reflexão acadêmica.



A inexigência de diploma banalizou a profissão de jornalista. Reduziu-a a um empirismo barato e insignificante, cuja condição de exercício será agora apenas de um estágio e um mero registro num ministério, como se tão singelas formalidades fossem suficientes para o desempenho de uma profissão tão nobre e exigente.



Por que os órgãos da grande imprensa brasileira (Rede Globo, Veja e Folha de São Paulo, por exemplo) louvaram a extinção do diploma? Se foi para baixar custos e contratar jornalistas baratos, estas empresas não enfrentarão a concorrência e em breve fecharão as portas. A razão é outra. O jornalista diplomado é um homem consciente de seus deveres. Exerce sua profissão com independência. Constitui sindicatos fortes e atuantes. Negocia coletivamente salários. Faz greve. Questiona a imprensa de interesses que age apenas como empresa, de olhos postos na vantagem econômica e não na missão social e política que dela se espera.



O jornalista diplomado e conhecedor de sua profissão divide o poder com o dono da empresa jornalística. Sua opinião tem peso. É independente. Tudo isto é visto como ameaça e está no fundo da argumentação contra o diploma pelos empregadores.



O Min. Gilmar Mendes, relator do processo, deu um exemplo: um chef pode ser um excelente mestre de culinária. Mas isto não significa que toda refeição deva ser por ele feita. Se a lição for seguida, os processos não precisam necessariamente de advogados e juízes. Podem ser conduzidos por rábulas. A medicina não necessita dos grandes médicos. Pode ser exercida por enfermeiros. As grandes construções não carecem de engenheiros e calculistas. Bastam as mãos experientes de pedreiros e serventes.



Então, finaliza o Professor Antônio Álvares da Silva, a ciência e o saber aprofundados se tornarão descartáveis. Em nome da plena autonomia, todos estarão livres para viver na superficialidade das coisas. Fecharemos as portas da universidade para a ciência e abriremos suas janelas para o mundo do empirismo e do conhecimento sem sistema. Em nome da liberdade estaremos usando o meio mais seguro de matá-la.

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