Márcio Adriano Moraes
Professor de Literatura e Português
marcioadrianomoraes@yahoo.com.br
O pescador cumpria o seu ritual diário. Madrugada fria, na mão todos os apetrechos de pesca. Era preciso ganhar o pão, o sustento da família iniciada há pouco. Mesmo sendo apenas ele e a esposa, a responsabilidade familiar já prenunciava um lar repleto de rebentos. Com sua vara a punho e sua rede, preparou a pequena embarcação. Rio Velho Chico.
Lançado às águas o anzol afunda à espera de uma fisgada. Manhã inteira de arremessos. Uma rede plantada em um local do rio estratégico, outra rede plantada na relva entre árvores, descanso. A tarde chega e surpreendentemente uma greve geral dos cardumes. Nenhum peixe, nenhuma fisga. O ensopado noturno não estava garantido. A venda do próximo domingo não estava garantida. Um trabalho não recompensando. Nenhum Cristo apareceu pedindo para jogar a rede do outro lado do barco. Entre a tarde e a noite, um último arremesso. Uma fisgada diferente. Ao puxar a linha, no anzol, um colar de quartzo. Magnífico, brilhante, feminino e, sobretudo, muito estranho. Rio solitário, só o pescador, seu barco e o colar. Alguém obviamente o perdera, mas impossível reconhecer o seu dono ou dona. Perfeito, praticamente intacto. O melhor peixe.
Em casa, o sorriso triste pela má pescaria foi convertido em uma estampa alegre. Mãos atrás, minha senhora um presente do rio para nós. Abraços e beijos. A mulher coloca o colar no pescoço, lamenta por ter de vendê-lo. O marido nega, não há dinheiro mais valioso que o sorriso da esposa. O espelho refletia uma bela imagem feminina, agora mais humana com uma pedra lapidada brilhando entre os seios. O marido insiste para sua senhora não o tirar.
Manhã próxima, novo ritual de pesca. Deixa o marido a casa. A esposa iniciaria um serviço no centro da pequena vila. Moravam distantes, à beira do rio. Escancarar a jóia no peito seria um afronto para a comunidade ribeirinha de simplicidade. O casal não tinha dinheiro suficiente para tal artefato. Mas era um simples colar de quartzo? Magnífico, sim, mas feito de uma linha de pesca e de pedras que se encontram ao monte no chão. Não seria luxo. Porém, seriam acusados de criminosos, ladrões. A mulher não saberia fazer tal colar, muito menos o pescador. Mas quem os acusaria, quem exigiria o colar de volta? Ninguém ali, aparentemente, saberia fabricar um colar tão perfeitamente lapidado. Nenhum morador ostentaria tal artefato no peito. Foi, sim, um presente do rio. Sobre o peito delicado, o colar brilhava, e sobre o colar uma blusa colorida de gola frouxa até o pescoço. Ninguém notaria. Só o ego feminino satisfeito.
A mulher abaixa para pegar uma pequena moeda caída no chão. A moeda, sim, era de algum conterrâneo. Pela falta de postura, deixa entrever o colar. Um homem olha e fita as pedras no pescoço embelezando os seios. Começa a observar a senhora do pescador, seguir o seu trajeto. Aguarda misteriosamente o fim do expediente. A mulher retorna a sua casa com o peito carregado de alegria. O homem a segue.
Já afastada da vila a mulher não percebe o seguidor. No caminho estreito que dá acesso à singela casa, entre um mato crescido, o homem a surpreende anunciando um assalto. Assustada, mas muito corajosa a mulher corre. Não grita. Os passos do estranho a seguem e a alcançam. Tapa no rosto barbudo. Soco no ventre fecundado. E outros socos nos lábios sem batons. Um puxão, e o colar é arrancado do peito. O homem foge com o presente do rio na mão. A mulher ferida termina a sua caminhada rumo a casa. O marido à espera. Ao deparar com sua esposa ferida, foi dominado de terrível ira. Mãos na garrucha à procura do barbudo. Nenhum sinal. Não avisou a polícia, a justiça chegaria de outra forma.
Outra manhã, o rio espera o pescador que lamenta a infelicidade da esposa, prepara sua vara e rede. Como nos últimos dias nenhum peixe. Não quebrando seu ritual, arremessa a vara uma última vez. A fisgada diferente. Puxa a linha, e preso ao anzol o colar de quartzo.