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Quarta-Feira,25 de Dezembro

O Bardo e o Mourão da porteira - por Itamaury Teles

Jornal O Norte
Publicado em 18/09/2007 às 11:25.Atualizado em 15/11/2021 às 08:17.

Itamaury Teles



Se perguntarmos aos montes-clarenses se conhecem a canção intitulada “Adeus”, de autoria do menestrel João Chaves, poucos responderão afirmativamente. Mas se falarmos no nome pelo qual é conhecida – “O  Bardo” -, muitos começam a cantá-la, de cor e salteado: “Ó Bardo que cantavas docemente/ Em noites de tristeza e de luar/ Ó Bardo que cantavas pras estrelas/  Ó Bardo que não ouço mais cantar.../ A lua também tem de ti saudade/ Vem sempre visitar o teu jazigo/ Se acaso a minha voz te vem magoar/ Adeus, fica-te em paz, ó meu amigo.”



A história dessa canção é muito curiosa. João Chaves e Manoel Silva Reis eram muito amigos. Quase irmãos. Fizeram um trato: aquele que primeiro morresse receberia do sobrevivente uma homenagem, no sétimo dia do seu falecimento. Como ambos eram compositores o preito de gratidão consistiria em uma canção, para ser cantada à beira do túmulo.



No dia 23 de julho de 1908, João Chaves – acompanhado  por outros amigos comuns do falecido -, cumpria a promessa, cantando, pela primeira vez, na sepultura do Silva Reis, a modinha “Adeus”, mais conhecida como “O Bardo”.



Quase sessenta e dois anos depois desse fato, em 11 de maio de 1970, faleceu João Chaves, uma das figuras mais notáveis da cidade. Nessa época, eu já morava em Montes Claros e me lembro bem da comoção causada com a morte desse jornalista, poeta, rábula e músico autodidata.



Após a missa de sétimo dia,  aproximadamente 3000 pessoas  se dirigiram ao cemitério local e, emocionadas, repetiram o gesto e cantaram  “Adeus”, sob a tíbia luz do luar.



Lembro-me que  “O Jornal de Montes Claros” divulgou em primeira página essa insólita homenagem póstuma e o “Estado de Minas” repercutiu a notícia em nível nacional.



Talvez em decorrência desse fato histórico, tornou-se comum tratos dessa natureza na cidade. Assim, volta e meia, tomamos conhecimento de seresteiros soltando a voz no silêncio da noite do campo santo, lá pras bandas do bairro Bonfim,  como última homenagem a um  “de cujus” qualquer. Ninguém estranha mais...



Por esses dias mesmo, ali no Kentura Kente, o meu primo Goda Porreta contou-me um caso desses. Só que um pouco diferente, pois o pedido fora feito para que se cantasse na hora do sepultamento, de corpo presente.



No velório de Tone Avelino, o féretro seguia normal, adentrando o cemitério, quando Beto Sanfoneiro retirou seu instrumento de trabalho, do porta-malas do seu Corcel velho de guerra, e não vacilou. Abriu a “pé-de-bode” no peito e soprou o fole, com gosto e estardalhaço.



Todos que acompanhavam o enterro estranharam aquele som e viraram pra trás em busca de explicação. E foi o próprio Beto quem falou macio e condoído:



- Ô, gente, cês num preocupa não. É que Tone Avelino, antes de morrer, me pediu pra tocá  “Mourão da Porteira”  no enterro dele. E eu tô cumprindo minha promessa.



Todo mundo ficou satisfeito com aquela explicação do Beto, e o cortejo seguiu normalmente.



Chegando à beira do túmulo, caixão aberto para as últimas homenagens de parentes e amigos, e Beto lá, firme, tocando “Mourão da Porteira” sem parar. E soltou a voz: “Lá no mourão esquerdo da porteira/  Onde encontrei vancê pra despedi/ É uma lembrança minha derradeira/  É um versinho que eu nele escrevi...”  E seguiu cantando as demais estrofes.



Um  coveiro, já dentro do buraco aberto, se ajeitava como podia naquele espaço exíguo, para recepcionar o esquife. O outro, cochilava, descansando o queixo no cabo da pá fincada no monte de terra fofa...



E tome “Mourão da Porteira” na sanfona e na voz roufenha do Beto.



Com um sol abrasador, às três horas da tarde, no horário de verão, o suor inundava o rosto dos circunstantes, que se enxugavam como podiam, até mesmo numa fita que pendia de uma coroa de flores, com a inscrição “saudade eterna”. A cada enxugada, uma letra saía da fita e colava na testa do esbaforido. Menos na de Beto, que se mantinha com as duas mãos ocupadas no cumprimento do seu dever.



Até que em um dado momento, já cansado de tocar a mesma música e não agüentando mais o calor, Beto virou-se para os coveiros e ordenou:



- Ô, os minino, vai agasaiano ele aí que num tô  güentano esse sol quente mais não. Seis “Mourão da Porteira” já tá  de bom tamanho pra dispachá o amigo...

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