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Sexta-Feira,10 de Janeiro

NESTES ANOS

Jornal O Norte
Publicado em 14/02/2008 às 11:21.Atualizado em 15/11/2021 às 07:25.

João Caetano Canela



Lembro-me (tinha 7 anos): estou na Praça da Matriz, espremido entre os adultos que se acotovelam na sacada do sobradinho de minha tia-avó. Assisto a um evento festivo que, segundo meus familiares, faz partes das comemorações do Centenário de Montes Claros. É um dia de festa, sim, e a praça, engalanada, enfeitada com uns arcos, se encontra tomada por uma multidão. A banda de música toca, há atrações que expressam a nossa cultura, o nosso folclore, os nossos costumes, as nossas tradições. No instante em que o cortejo em que figuram os “Caboclinhos” passa defronte a sacada em que nos encontramos, minha mãe me toma nos braços e me ergue, a fim de que eu os veja melhor. E eu, fascinado, os vejo, bem ali diante de mim com os seus adornos de penas coloridas.



Tenho outra lembrança que é dos meus 12 anos: estou jogando futebol com outros meninos, num campinho de várzea que se situa às margens do rio Vieira - quando um transeunte, detendo-se por um instante junto de nós, avisa-nos, em tom alarmista, que John Kennedy fora assassinado, após o que sai a gritar assim pela rua afora: “vai haver guerra, vai haver guerra! Interrompemos a nossa pelada e nos entreolhamos, assustados não tanto com o fato de alguém ter sido assassinado, mas com a palavra “guerra”, sendo que um garoto que se encontra conosco (ele só tem 8 anos, é amedrontado e frágil) vem me perguntar se realmente vai haver guerra. Ora, não sei se vai haver guerra, não sei nada, sequer sei (doce ignorância, santa alienação!) quem é John Kennedy. Digo isso ao garoto com toda franqueza, ao que ele, coitado, numa atitude pânica de criança emocionalmente desestruturada, rompe a chorar convulsivamente, a ponto de exigir que o levemos para casa.



Outra lembrança (eu tinha 18 anos, ah!): o réveillon do Automóvel Clube, passagem de l968 para l969. O glamour do baile, o charme dos presentes – cavalheiros de terno preto ou smoking, damas de vestidos toalete. Ao soar a virada do ano, após a contagem regressiva, a alegria rebenta, e um frenesi toma o salão: o espocar de balões e champanhes, o alvoroço, o liame de mil serpentinas, o confete por todo canto - semeado nos cabelos empastados de suor, grudado nos colos transpirados e arfantes, boiando nos copos de uísque, atapetando o chão - e mais o odor do lança-perfume a impregnar o ar e a criar uma atmosfera de alumbramento. Os presentes, estonteados e entregues a uma cordialidade etílica, a se confraternizar pelo salão, radiantes, saindo do enleio de um abraço para outro, felicitando-se mutuamente com uma frase maliciosa e francamente alusiva ao sexo -“Feliz 69!”



Mais outra lembrança (eu tinha apenas 6 anos, meu Deus): estou no consultório do meu tio, que é cardiologista. Aguardo um ortopedista que, em atenção a esse tio, virá me atender ali. Qual o meu mal? Jogando bola descalço, sofri fratura exposta de um dos dedos do pé. Sinto dores fortes, meu pé lateja por inteiro, choro baixinho. Meu avô e minha mãe, que me levaram até ali, me lançam olhares preocupantes. Mas o meu tio os tranqüiliza, diz que o especialista já se encontra a caminho e vai cuidar bem de mim. “Isso não vai valer nada, viu João” – meu tio me conforta assim, para depois se voltar para minha mãe e meu avô e, referindo-se à situação política (minha gente era envolvida com política partidária e pertencia ao antigo PR), dizer que preocupante é outra coisa: o resultado das eleições presidenciais, já que, segundo ele, “o PSD local, com a vitória de JK, vai querer nos engolir.”



Menciono essas lembranças e penso noutras que não menciono. E assim vou pensando em tudo o que vivi nestes anos – tanta coisa, tanta coisa que veio e acabou se indo – e pensando no que já faz parte do meu passado remoto, um passado que vejo esgarçado no tempo, quase irreal, quase fictício. E é como se esse passado não tivesse se constituído algum dia num presente veraz e tangível, um presente como este que vivo hoje e certamente vai passar também, num escoar permanente e sorrateiro, até afinal deixar de passar, porque então eu próprio terei passado também e serei apenas uma lembrança remota de quem não me esqueceu e guarda no coração.

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