Mara Narciso
Médica e acadêmica de Jornalismo
Quando nasci, a minha avó tinha 45 anos, e para uma criança, quem tem essa idade não é jovem. A minha avó não chegava a ser bonita. Era pequenina, de menos de um metro e meio, magra, pele e olhos claros, hábitos simples, e a maneira como se vestia chamava a minha atenção. Quando ia se trocar para sair, colocava meia fina três quartos, presa na perna com elástico, um sapato número 33, fechado e de saltinho, geralmente uma saia e blusa, às vezes vestido, nunca calça comprida. Não usava maquiagem, apenas um pouco de pó de arroz. Tinha os cabelos curtos, finos, lisos e pretos, e não os pintava. Usava esmalte rosa médio, e tinha as suas pequenas vaidades. Não gostava de ser magra, nem de ter os cabelos escorridos, e para anelá-los fazia tratamento permanente.
Seu nome era Maria do Rosário de Souza Lima, mas quando se casou mudou para Maria do Rosário de Souza Narciso. Os pais da minha avó Du eram bem de vida, e tinham uma fazenda onde é hoje o Clube Lagoa da Barra. Moravam na Rua Dr. Veloso, no centro de Montes Claros. A minha bisavó, chamada Florisbela, era casada com Jason Gero de Souza Lima e teve 24 filhos, sendo a minha avó Du uma das filhas mais novas.
Maria do Rosário conheceu Petronilho Narciso, então trabalhador do comércio, e não teve a aprovação dos pais para namorá-lo. Anos depois, o casamento aconteceu, após a morte do meu bisavô. Era o dia 4 de outubro de 1931, e faltavam dois meses para Du virar professora. Terminava o curso normal, uma raridade para a época, mas largou tudo para ser esposa e mãe.
Diminuta, e portadora de bronquite, diziam que ela não sobreviveria a uma gravidez. Teve11 filhos, todos de parto normal, como se usava na época. Dois morreram ainda crianças. Os nove restantes foram Maria Josefina (Nininha), Maria Milena (a minha mãe, já falecida), Francisco (Chiquito), Pedro, Marlene, Marly, Rosa Clarice, Maria Inês (Dida) e Petronilho Júnior (Tonilo).
A vida foi difícil para ela, mesmo assim, mostrava interesse por assuntos diversos como Medicina e remédios, - gostava de ler bulas-, literatura e política. Curiosa e inteligente, a minha Avó e eu tivemos um convívio muito agradável. A melhor coisa para mim, era ir à casa dela. Dormir lá então, tinha um encanto, com uns sons e uns cheiros que nunca mais esqueci.
Vovó gostava de cuidar de plantas e flores, então comprou um pequeno sítio chamado Rocinha, próximo à cidade, onde íamos plantar árvores. Uma vez, levamos mudas de jabuticaba, e alguém disse a ela, para desanimá-la, que jamais chuparia as frutas, morreria antes das árvores produzirem, porque os pés de jabuticaba demoravam 33 anos para dar. A minha Avó Du não se importou, e continuou na sua faina de plantadora de árvores. E dessas jabuticabas ela chupou. O seu jardim chamava a atenção de todos que passavam, pois tinha muitas rosas, palmas-de-santa-rita, margaridas, dálias, esporinhas, boca-de-leão e até papoulas. Mais tarde Vovó passou a colecionar hibiscos de todas as cores.
Costurava e bordava os vestidos das suas filhas, quando pequenas, e depois os das suas netas. Tinha o costume de fazer doce de goiabas colhidas no quintal, e também biscoitos e roscas, cujo cheiro me traz saudade. Era impressionante ver a disposição daquela mulher de aparência frágil, mesmo com a ajuda de outras pessoas, colocar lenha, acender o fogo, depois tirar as brasas e colocar as formas com biscoitos para assar no forno redondo de alvenaria. Quando estava menos quente, era hora de por as roscas, que eram tão deliciosas, que para lhes fazermos justiça deveríamos rezar antes de comê-las. Outras guloseimas permanentes, que ela fazia, eram mel de rapadura, bala delícia e marshmallow, que a gente chamava de “mexe-mel”.
Vovó tinha muitos discos de Roberto Carlos, que adorava, emocionava-se e quase chorava ao ouvi-lo. Embaladas ao som da radiola portátil, ficávamos as duas a conversar nas inesquecíveis tardes. Ela, ora cantava para eu ouvir, enquanto costurava na máquina a motor, ora conversava comigo.
A minha Avó era amorosa, e não se utilizava de palavras ásperas, sendo muito discreta. Falava baixo e educadamente. Era apenas carinho, assim, a casa dela era um lugar onde se recebia amor e atenção, e todos se acreditavam ser os mais queridos. Ela deixava cada um acreditar nisso.
Guardava para a gente uma pinha madura, daquelas doces como mel, colhida no seu quintal. Aquele que recebia o presente ia comer em sua casa, com toda a pompa e circunstância, para curtir o sabor bem devagar.
Maria do Rosário era romântica e sonhadora. Ia ao cinema durante à tarde para assistir aos filmes onde mulheres apaixonadas se debulhavam em lágrimas. E acabava por acompanhá-las no choro. Foi assistir mais de uma vez ao filme “Dio come ti amo”, com Gigliola Cinquetti, e ainda comprou o disco com a música tema.
Ia à missa, recebia as suas irmãs, depois as filhas e netas, cuidava do meu avô, e gostava de falar ao telefone. Lia o jornal, se empolgava com as campanhas políticas, via televisão, acompanhava umas poucas novelas, e viajava de vez em quando. Era tão bom estar na companhia dela. Quando completou 69 anos, começou a falar que não queria viver. Depois, se esquecia disso e continuava como sempre tinha sido: puro amor.
Chegou com o cometa de Halley, em 1910, há cem anos, portanto, e se foi junto com ele em 1986. Viveu 76 anos, o tempo da órbita dele em torno do sol. Tenho uma foto de Vovó na minha sala, e sempre reverencio, nesses 23 anos de ausência, aquela que foi um cometa na vida de todos nós.