Felippe Prates
BOCA
Linda boca auroral, rubra corola
Prodígio d’arte, escultural lavor,
De cujas pétalas se desprende e evola
O magno eflúvio de uma carne em flor...
Boca impoluta que jamais descola
Os castos lábios da purpúrea cor,
Piedosamente... para dar a esmola,
A doce esmola de que vive o amor...
Pulcra boca aromal! Hóstia de sangue
Suspensa à ansiedade acerba e louca
De um triste coração súplice e exangue...
Hóstia! Na contrição de meus desejos,
Pede minh’alma a palpitar na boca
A excelsa eucaristia de teus beijos...
Para a apreciação de nossas queridas leitoras, oferecemos-lhes, hoje, este belíssimo soneto do montesclarense Hermenegildo Chaves, Monzeca, composto aos 19 anos de idade, um poeta de fina sensibilidade que, ao lado de seu irmão, João Chaves, se incluem entre os melhores de sua geração. Na nossa opinião, Monzeca muito é mais poeta do que o irmão. Fraternal amigo da vida inteira de Papai, Newton Prates, Monzeca brilhou intensamente no jornalismo mineiro e os dois são considerados, com muita justiça, os maiores jornalistas da nossa terra e de Minas, em todos os tempos.
Dizia Papai que Monzeca foi o homem mais inteligente que ele conheceu. Cyro dos Anjos, situava-se num honroso segundo lugar. E olha que Papai conviveu pessoalmente com expoentes do jornalismo e da literatura mineira e brasileira, como Djalma Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cyro e seus brilhantes contemporâneos. Monzeca adivinhava as coisas, aprendeu Francês sozinho e foi, durante décadas, editorialista do “Estado de Minas”. Raramente lia um livro, pois, sabidamente, quando acontecia um lançamento com boa repercussão, provocava uma discussão entre duas pessoas em cujas inteligências acreditava, dava palpites, fazia perguntas e, como resultado, ficava doutor no novo texto, discutindo-o, até com o autor, sempre com vantagem, valendo-se de sua memória incomum e do amplo domínio da crítica. Um gênio!
Certa vez, numa copa do mundo, lhe encomendaram um artigo sobre futebol. Monzeca, que nunca jogou bola na vida e jamais, sequer, assistira a uma partida de futebol, pediu que lhe explicassem como se praticava esse esporte. Pois bem: até hoje, ninguém conseguiu escrever um texto melhor do que Monzeca sobre futebol!
Três jovens talentosos iniciaram suas carreiras de jornalista pelas mãos de Papai, na “Folha de Minas”, jornal por ele fundado e dirigido durante dez anos. Foram eles: Fernando Sabino, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, à época conhecidos como “os gibis”, em razão da pouca idade.
A primeira vez que Monzeca, companheiro do jornal, leu na redação um texto de Rubem Braga, então com 18 anos, seu faro de grande jornalista funcionou, encantou-se e percorrendo mesa por mesa disse aos colegas, com a crônica na mão:
- Prestem atenção: está nascendo um novo cronista, excelente, que escreve de um jeito diferente e que há de fazer grande sucesso! Guardem este nome: Rubem Braga!
Palavras proféticas, acertou na mosca.
Sempre fomos seu grande admirador, pois Monzeca desperdiçava talento até de boca fechada. Bastava o olhar. Morando no Rio, sempre que íamos a Belo Horizonte, mesmo sem Papai, o procurávamos à noite para conversar, admirá-lo e com ele aprender em intermináveis rodadas de café com bolinhos de feijão, madrugada adentro. Refinado gozador, um dia nos pediu notícias de um político da terra que tinha duas mulheres, uma na cidade, outra na fazenda, onde criava bois. Observação de Monzeca:
- Ô Felippe! Mulher também tem boi, não tem?...
Por insistência de Papai, resolveu comprar uma casa, no bairro do Prado. Ainda menino, estávamos na redação do jornal quando Monzeca nos pediu que fossemos ver a casa junto com ele. Lá chegando, nos recebeu a proprietária, muito gentil e atenciosa. No jardim, perto do alpendre, havia uma jabuticabeira cheinha de flores, para deslumbramento de Monzeca, que nos disse:
- Ô Newton! Vai na frente com o Felippe para conhecer a casa, que eu já estou indo.
Olhamos e gostamos. Era uma casa boa, construção recente e sólida, confortável, cômodos amplos com um quintal nos fundos. Terminada a visita retornamos ao jardim e Monzeca continuava examinando a jabuticabeira, imerso em total encantamento. Perguntou:
- Quanto é mesmo o preço da casa?
- Quatro contos de réis, respondeu-lhe a proprietária.
Vencido pelo doce coração de poeta, Monzeca exclamou:
- Está muito barato! Só este pé de jabuticabas vale uns cinco contos de réis...
Acredita-se que foi essa a única vez, no mundo, que um comprador encareceu sua própria compra...
* Boca – Com quase 100 anos, é interessantíssimo o original deste famoso soneto que integra o arquivo particular e pessoal do cronista. Escrito com caneta-tinteiro sobre uma folha pautada de caderno infelizmente de má qualidade, contém poucas alterações no seu texto. Há algumas gotas escuras que Papai sempre garantiu serem de café. Monzeca, muito gentilmente, presenteou o amigo Newton, Papai, com o original do soneto. Por herança, hoje somos nós que cuidamos carinhosamente deste verdadeiro tesouro, numa luta terrível e cada dia mais difícil contra a deterioração imposta pelo tempo. Especialistas nos aconselharam a não mais tocar no papel, mesmo com luvas, pois este começa a se esfarinhar.