Montes Claros era assim: A santa que apareceu na copa da mangueira

Jornal O Norte
Publicado em 03/03/2008 às 10:38.Atualizado em 15/11/2021 às 07:26.

J. Prates



Eu trabalhava no O Jornal de Montes Claros e houve uma ocasião, pouco antes do Dr. Oswaldo Antunes assumir a direção, que eu tinha a função de faz-tudo na redação. Escrevia todo o jornal, do editorial à crônica policial do dia, e mais a página de esportes que, por não entender de futebol, como não entendo até hoje, baseava-me nos comentários da rua sobre tal ou qual jogador e mais as informações que me dava o Dr. Mário Ribeiro, quase sempre sobre o Ateneu e pouca coisa sobre o Cassimiro.



Só não fazia a parte social porque dona Maria tomava conta da lista de aniversariantes do mês, que ocupava quase meia página central, com o nome de todo mundo e ai de nós se não publicasse. A maioria era assinante. Para tampar qualquer buraco, se não houvesse um acontecimento local digno de nota, como dizia Zezinho Fonseca, inventava qualquer coisa acontecida pelo Rio de Janeiro, Recife ou lugar mais longe. O negócio era fechar o jornal. Pra eu fazer tudo era difícil: pulava mais que pipoca na panela quente, mas o jornal saía.



Certo dia, véspera da edição - era hebdomadário, como eu dizia pra enfeitar o pavão -, mal entrei na redação, por volta das três horas da tarde, vindo do almoço, e o Meira já me alertava que havia um buraco na última página e não tinha nenhuma matéria para cobri-lo. Sentei-me à velha máquina, pensei, pensei e nada me veio à mente que pudesse escrever. Levantei-me, peguei a bicicleta, uma Royal de quadro duplo que comprei à prestação na loja de Waldyr Macedo, com uma plaqueta dizendo Imprensa no centro do guidon, e corri para a delegacia de polícia.



Cheguei e acordei o Coronel Coelho, que cochilava na cadeira de alto espaldar, toda alcochoada que, realmente, convidava a um cochilo; Tininho, o auxiliar, tomava café no botequim, ali mesmo em frente, que o dono fazia questão que fosse chamado de bar, porque botequim é lugar de cachaceiro de pés sujos.



Quando entrei na sala da delegacia, o Coronel levantou a cabeça e olhou espantado. Perguntei se havia alguma ocorrência digna de nota. Nada, nada aconteceu.



- Tudo como antes, no quartel de Abrantes - respondeu sorrindo.



No Alto de São João, perto da cancela, havia, naquele tempo, um pequeno posto policial que quase não registrava ocorrência mas, quem sabe aquele dia tivesse alguma coisa? Peguei a bicicleta e corri para lá. Era longe e já eram quase seis horas. Tinha de ser rápido.



Quando comecei a subir a rua para chegar ao alto, caiu uma chuvinha fina, esse ge-re-rê que custa parar e eu estava com pressa, tinha que seguir em frente, com chuva e tudo.



Estava passando pelo quintal da casa de Geraldo Vale, um terreno grande, todo murado, deixando ver apenas a copa das mangueiras. Em frente, numa casa de alto e baixo com um bonito alpendre, uma mulher acendeu uma lâmpada bastante forte, que projetou luz sobre a copa de uma mangueira bem em frente. Aconteceu uma coisa inexplicável, mas que muito me ajudou na ocasião. A luz projetada na copa da mangueira, com a chuva fina que caía, formou um cone de luz que, não sei explicar o porquê, dava a impressão de uma imagem humana. A imaginação completava a imagem, colocando-lhe, inclusive, um manto. Era Nossa Senhora!



Fiquei olhando aquele espetáculo, procurando entendê-lo. Não havia ninguém por perto; até a mulher que acendeu a lâmpada sumiu. Foi aí, então, que me veio à idéia: uma santa está aparecendo na copa da mangueira do quintal de Geraldo Vale. Uma santa, qual santa? Não importa. Qual seja ela, é objeto da imaginação de cada um, eu não ia me arriscar a nomear a aparição. Ainda com a chuva caindo, corri de volta à redação. Lá cheguei todo molhado, mas com a notícia na mão, ou melhor, na mente. Fui para a máquina e redigi. Pronta a redação, levei para composição e mandei que Meira tirasse a manchete da primeira página e colocasse na última. A manchete da primeira seria esta: A Imagem de uma Santa aparece na copa da mangueira no quintal de Geraldo Vale.



Dona Maria, que ainda estava na redação, ficou me olhando e perguntou:



- Que santa é essa?



- Não sei – respondi - Só posso dizer que tem muita gente, com chuva e tudo, rezando pra Santa.



- Cuidado! Inventar coisa de santo é pecado.



Pegou o xale, jogou no ombro e foi saindo, balbuciando um Deus me perdoe...



No dia seguinte, o menino jornaleiro gritava a plenos pulmões:



- Santa aparece no quintal do Seu Geraldo Vale.



A edição esgotou. Foi um rebuliço danado. À tarde era muita gente na rua da santa e um povão aglomerado em frente à copa da mangueira, querendo ver a santa. Fui entrevistar uma senhora que lá estava, de terço na mão. Ela afirmou que não era a Virgem Maria. Seria uma menina que a mulher de Geraldo Vale criava, menina muito devota a Deus, e queria, inclusive, ser freira, mas morreu de pneumonia ainda na infância. Outra a quem entrevistei disse que há muito essa santa aparecia, e até havia curado a bronquite de sua filha mais nova. E começou, então, a surgir milagres e mais milagres e pessoas que já tinham visto a santa.



No outro dia aumentou o número de pessoas e até abriu-se o comércio de santinhos e fitas da santa. Quase ao meio dia chegaram dois ônibus vindos de Francisco Sá e jogaram gente naquela rua. Era o início da romaria à santa. Fui até um senhor que descia do ônibus e perguntei como ele teve a notícia da aparição. Ele respondeu que a filha que mora em Montes Claros mandou notícias dizendo que a santa estava fazendo milagres. Ele veio com a mulher pedir para lhe curar uma dor nos quadris que não lhe deixava trabalhar na lavoura.



O pior da estória é que eu não tinha condições de desmentir. Falei com minha sogra que eu havia inventado a estória, foi um Deus nos acuda! De herege para cima, não ficou nada que ela não me chamasse. Em umas duas edições, alimentei a estória. Logo em seguida, o Dr. Oswaldo assumiu, não permitiu que se publicasse mais nada. Sem alimento, a crença foi morrendo até que desapareceu.

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