Mijões de última hora

Jornal O Norte
Publicado em 28/10/2010 às 09:49.Atualizado em 15/11/2021 às 06:42.

Ronaldo Duran


Escritor


www.twitter.com/ronaldo_duran



Ela veio de outra divisão, não fazia quinze dias. A moça nada tinha contra o serviço de limpar banheiro, uma das muitas tarefas que constam da descrição do cargo. De manhã, faz o café, arruma a cozinha, varre as salas. Balde com água numa mão, noutra, a vassoura. Vai ela pelo corredor a saudar a turma. Diretoria, chefia e nós. Como ficar inerte à sua presença?



Ela, mãe de adolescente, mulher batalhadora, que mostra uma vitalidade, uma disposição, uma simpatia, ainda que executando árduo serviço. Dá inveja a marmanjos como eu, intelectuais, das vezes que me vejo soterrado no tédio alimentado por sonhos frustrados.



Não digo que todos que executam serviços braçais são o exemplo de candura. Nada. Tem gente muito amarga, resmungona, infeliz. Sorte minha me deparar com essa moça. A sua forma de falar, seu sorriso, as notícias que traz informalmente, tipo "rádio corredor". Quando o tédio me maltrata, eu corro pra cozinha. Basta olhar sua disposição, e aí a consciência grita "cara, toma vergonha. Valoriza tua existência".



Toda história marcante grava algo inusitado, do contrário tendemos não dar importância. Não é meramente pela vitalidade da moça da limpeza que eu, responsável pelo núcleo de informática, aos trinta anos, lembro desse feito.



É que lá pelas 17 horas, boa parte do pessoal encerra o expediente. Não raro, vinte ou quinze minutos antes, religiosamente, pelo menos eu e meia dúzia de barbados, corremos para o banheiro. Sabe como é. Ter que pegar metrô, aturar ônibus. O longo percurso de uma ou duas horas para chegar a casa. Para evitar a vontade de fazer xixi no meio do caminho, é que me previno. Toda vez que deixei de ir ao banheiro, me ferrei. Já pensou ficar apertado no trânsito?



A moça da limpeza, no início, eu não sei por que, calhou de obstruir o recinto. Cada vez que íamos ao banheiro, estava ela lá, limpando, jogando água. Começava lá pelas 16 horas, não sei precisar. Era incômodo ficar contando os minutos para ir ao banheiro. E o medo de perder o ônibus? Uma tensão.



A sorte é que mudou. De repente, voltou a paz. Chega a hora da correria, e que alívio ver o banheiro livre. Ela, inteligente como imagino que seja, percebeu o tumulto que causava ao limpar o baneiro à tardinha. Passou a tarefa para parte da manhã, evitando frustrar os mijões de última hora.

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