Mario Vargas Llosa

Jornal O Norte
Publicado em 19/10/2010 às 09:02.Atualizado em 15/11/2021 às 06:41.

Felippe Prates



Em busca de um realismo rebelde, Mario Vargas Llosa, ganhador do Prêmio Nobel  em 2010, renovou a literatura.  Peruano nascido em 1936, na cidade de  Arequipa, o atual detentor do Nobel de Literatura é um dos mais importantes representantes do chamado “boom” latinoamericano, segundo Bella Jozef, escritora, ensaísta e Professora Emérita da UFRJ, cuja magistral palestra, encantados, assistimos recentemente.



A partir dos anos 60, a biografia e a bibliografia de Mario Vargas Llosa enriqueceram com livros e prêmios, desde o Leopoldo Alas até o Cervantes de 1994, passando pela Biblioteca Breve, Formentor, Rômulo Gallegos, Príncipe Astúrias, Planeta, para citar apenas os mais importantes.  Agora, o autor acaba de receber o Prêmio Nobel, expressão máxima em termos de consagração literária em todo o mundo que, aos 74 anos, veio coroar uma vida dedicada à literatura.



Várias linhas confluem e se encontram nas obras do escritor peruano, intimamente ligadas à sua concepção teórica do romance e a relação entre uma realidade anterior à obra de arte e à realidade descrita, bastante complexa.  Sua visão não é estritamente literária, pois considera o escritor testemunha de seu tempo.  Em sua cosmovisão, sem perder de vista que a ficção obedece às coordenadas do real, questiona a conceituação regionalista do romance tradicional hispano-americano com o propósito de constituir um universo amplo e independente.



Na nossa opinião, este Prêmio Nobel de Literatura realmente premia o conjunto da obra, pois a genialidade do autor chega a tal ponto, que fica muito difícil escolher um dos livros de Vargas Llosa como sua obra síntese e, nesse sentido, a opinião pessoal de cada leitor pesa e varia muito. Todos são ótimos e o melhor deles, só Deus sabe...  Em “A casa verde”, “Conversa na catedral”, “A festa do bode” e o consagrado “A Guerra do Fim do Mundo”, hoje o livro mais lido em todo o planeta e que o levaram à glória máxima, Mario Vargas Llosa cria um mundo que não reduz a realidade.  É a realidade em si mesma, “mundo livremente escolhido pela memória e reconstruído a partir dela, em virtude de uma visão poética” que a torna um documento da aventura do homem.  A realidade, integrada nas obras, oferece-se nas ações, que nada mais são que as relações humanas em sua objetividade.  O romancista organiza, através de novos sistemas de expressão, uma atmosfera ficcional coerente e sobrepõe uma ordem poética ao mundo que falsifi


cou os pressupostos da existência individual, desvirtuando os valores solidários.  Procuram dar um sentido à realidade porque, como ele próprio afirmou, “a realidade é caótica; não tem nenhuma ordem. Em troca, quando passa ao romance, aí sim, tem uma ordem”.



Vargas Llosa assinala a abertura para as modernas estruturas da narrativa contemporânea.  Incorpora à tradição hispano-americana técnicas de procedências tão diversas como as do “nouveau roman”, do impressionismo, do expressionismo, dos romances de aventuras (Llosa é leitor assíduo dos romances de cavalaria), a épica, o melodrama, o thriller e a canção de amor.  Influíram em suas obras, de acordo com seu próprio testemunho, Flaubert, Tolstói e Faulkner.



A primeira notícia sobre Canudos veio-lhe após a leitura de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, obra de grande impacto na consciência nacional brasileira, amálgama de ensaio científico, panfleto e relato literário.  “Sem Euclides, eu nunca teria escrito o meu livro



“A guerra do fim do mundo”, afirma Vargas Llosa. E, sábiamente, esta é a dedicatória: “A Euclides da Cunha no outro mundo e, neste mundo, a Nélida Piñon”.         



Com “A gerra do fim do mundo”, Mario Vargas Llosa retoma seu interesse pelo romance de cunho épico e histórico.  O alcance épico deriva do sopro de transfiguração artística com que forjou os protagonistas e as massas do drama de Canudos, num empenho de criação do “romance total” e de abarcar o mundo de modo absoluto.  Toma como ponto de partida documentos históricos e os desconstrói para integrá-los à narração utilizando a obra de Euclides como um documento a mais.  Reconstitui o Arraial, descreve a longa campanha militar e as quatro expedições que culminaram na morte de milhares de vidas e do próprio Antônio Conselheiro.  Entre os personagens, traçados com elaborada nitidez, ressaltam o anarquista Galileo Gali e o jornalista sem nome, míope não por acaso.  História, mito e imaginário se conjugam nesse universo literário, tecido no plano do estético porém nutrido nas fontes do imediato.  Ao inventar situações para construir uma obra de ficção, Vargas Llosa enriqueceu um episódio-chave da totalidade histórico-social do continente, que não compreendeu como um episódio isolado.  Numa entrevista concedida em Roma ao jornal “Il Tempo”, ele ilustrou o significado de seu romance: “Eu ressalto no meu livro a responsabilidade dos intelectuais que favorecem o massacre (...)  Tratou-se apenas da fome, da ignorância, da pobreza.  Um equívoco que fez escola”.  O autor, ao superar as velhas fórmulas do realismo tradicional, entende-o como um ato de rebeldia, uma representação horizontal e vertical do mundo e com isso reforça a tradição social da novelística hispano-americana. Levado pela constatação do encontro violento de duas sociedades incomunicáveis em Canudos, Vargas Llosa mostra como os preconceitos, a intolerância, os temores e ambições políticas extremados podem conduzir ao fanatismo e à intolerância, incapaz de aceitar divergências.  Assim, como consagrado intelectual latino-americano que é, dotado de aguda sensibilidade e consciência das injustiças, um humanista, confirma o compromisso com sua sociedade e seu tempo. 



Considera que na América Latina contemporânea ainda há Canudos em muitos países, associando o Brasil à América Hispânica numa integração cultural tão desejada e em gestação, como comprova a sua magnífica obra.



Como disse o personagem de “Tia Júlia e o escrevinhador”, alter-ego do escritor, “a literatura, a coisa mais formidável do mundo”.



Mario Vargas Llosa, quando for receber o Prêmio Nobel de Literatura, certamente levará consigo seus personagens, fantasmas e suas obsessões. O Brasil estará representado por Antônio Conselheiro e também lá estarão, além de Galileo Gali, o jornalista míope, Zavalita, Belisário e a Chunga, hoje imortalizados graças à corajosa e nobre postura humanista/liberal desse incomum e genial autor.



Em tempo: Sugerimos às nossas leitoras, para melhor apreciação do livro de Vargas Llosa, a releitura de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.



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