Leitura sem censura - Pérola de candidato - por Adilson Cardoso

Jornal O Norte
Publicado em 24/04/2008 às 09:19.Atualizado em 15/11/2021 às 07:31.

Adilson Cardoso


adilson.airon@mail.com



Zé de Fuscentina é assumido candidato a uma cadeira para a vereança de Montes Claros. A mulher, os filhos e os vizinhos já o fazem dono de um dos gabinetes do legislativo. O sonho é muito grande, a vontade de pertencer ao esquadrão de gravatas obriga o filho de Fuscentina a passar por constrangimentos inevitáveis.



Analfabeto na mais crua das expressões da palavra, certo dia ficou extasiado com a facilidade que tinha um vendedor de vales transporte e balas de gomas na Praça Dr. Carlos. O moço gesticulava,  vociferava como um poeta recitando uma poesia  inflamada, dando ênfase na promoção de cinco pacotes de balas por um real. Era um monólogo da tragédia grega, longe das humildes pretensões do ambulante.



Zé, coitado, não tinha noção de tudo isto mas, de boca aberta, olhando aquilo, já havia despertado atenção dos impacientes passageiros. Ali, na tortura da espera, continuava olhando o vendedor, que percebia por meio de rabo de olhos e começava a ficar incomodado.



O candidato só pensava no palanque, ele no grande comício de encerramento da sua campanha lá na praça do Maracanã, gesticulando como o vendedor e atraindo a multidão. Ainda na mesma seqüência do êxtase se vê na reunião ordinária da câmara municipal sendo aplaudido de pé pelo povo e pelos colegas. Enxergava tão longe que não se deu conta que já estava em cima do versátil vendedor, que já não estava gostando do olhar penetrante do Zé e lhe tacou uma cotovelada. Quem viu achou que foi o replay do jogador atleticano Coelho trucidando o foquinha Kerlon do Cruzeiro.



Voltando a si, com o queixo em desalinho, o talvez futuro vereador olhou em volta e viu olhares patéticos o interrogando. O ambulante completou:



- Sai de mim, bicha véia!



O filho de Fuscentina quase padece ali naquele chão cheio de papéis que deveriam ser jogados nas lixeiras. Muito tímido e de pouco argumento, não teve como esboçar reação alguma quando a tripa lhe torceu, num ato tão violento que suor pingou, as pernas cruzaram e o terminal do intestino grosso mandou avisar que abriria as comportas. Uma luta entre os dois hemisférios do cérebro se inicia, a timidez aumenta e uma trovoada se ouve ecoando no epicentro, as pernas reforçam o cruzamento, o moço já é quase um parafuso, a boca afunila e é chupada com vigor para dentro. Uma mistura de Pica-pau com Patolino é a foto fiel do candidato no momento em que um grito involuntário eclode:



- Ai... ai... num agüento mais não!



E dispara torto correndo em ritmo de marcha olímpica em direção ao lado oposto da praça, onde ficam os banheiros, com os olhos esbugalhados e os joelhos encostados um no outro, vendo-se apenas metade de baixo das pernas se abrindo para locomoção. Parecia que o banheiro se distanciava e obstáculos intransponíveis eram lançados a sua frente. A essa altura ele havia parado a respiração, uma apnéia necessária era sua ultima chance. Mas a sorte lhe reservava mais surpresas. No ponto de ônibus ao lado do banheiro estava Tião de Quelemença, o presidente da associação de moradores que lançara oficialmente o nome do notável apressado para a disputa. Ao cumprimento Zé já estava com a boca torta à direita, e dava pequenos remelexos contendo o fluxo dominador que exalava discretos avisos de que chegara a hora.



Zé deu um safanão na mão do citado e entrou para o banheiro. Quando enxergou o vaso, nada mais segurou aquela guerra revolucionária no interior do intestino. Na sede angustiante de libertação, estourou cinto com botão e zíper e agachou-se fazendo um barulho tão intenso que o zelador correu para fora do recinto, achando que era vítima de atentado a bomba.



Após o desenrolar dos fatos, duas horas depois, sai do banheiro com as calças sujas no meio da pernas e uma vergonha indescritível.



Ao chegar em casa, uma faixa em frente da entrada dizia: Zé de Fuscentina, o cheiro da mudança. 



Levindo, peladeiro e amigo de Valdizão, esperava o candidato para pedir ajuda para comprar um jogo de camisas, que chegou de cabeça baixa sem cumprimentar ninguém. Levindo sentiu aquele cheiro, olhou para a faixa e sorriu, falando em tom sarcástico:



- Mudança! Tem uns lá que já usam esse cheiro há quatro anos ou mais, vem mais é bosta por aí.

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