Leitura sem censura: INFELIZ COINCIDÊNCIA - por Adilson Cardoso

Jornal O Norte
Publicado em 29/01/2008 às 09:44.Atualizado em 15/11/2021 às 07:24.

Adilson Cardoso



Sexta-feira, finda a jornada, mais uma semana de labuta se acaba. Com base nos tratados dos direitos inalienáveis do homem, saímos para tomar uma cerveja em um bar do Bairro Cidade Nova. Como sempre, mesa embaixo das arvores e um papo descontraído, falando sobre tudo, menos o árduo formalismo do dia-a-dia. Apesar de passar das 19h, o horário de verão altera a natureza e nos deixa ficar um pouco mais antes do escurecer. A quadra em frente estava lotada, gritos de fúria pela energia dos atletas que ecoavam se misturando a outros barulhos que vinham de todas as direções. De um lado da pracinha vejo uma jovem mãe que com seu bebê no colo, sorri tranqüilamente, aproveitando o frescor da sombra. E nossa mesa já estava na quarta cerveja com algumas doses de cachaça curraleira e uma deliciosa fritura de carne de porco acebolada, o papo já havia variado conforme a ação dos goles no sentido.



E no meio dos risos tranqüilos de batalhadores, como nós e como outros que por alí estavam três estalos, surgem do nada. É traque! Outro mais convicto apela para o nome do nosso senhor e vocifera, “meu Deus é tiro”! Nossa mesa se desfaz aos atropelos derrubando tudo pela frente, o mais rápido já se encontrava trancado no pequeno banheiro do lugar, por saber que não possuo o elixir da longevidade, busquei também me esconder por não ter ciência de que direção vinha os estampidos. Em poucos minutos de volta a porta, vejo um jovem cambaleando em direção nem se sabe de onde, pois claramente fraquejava e logo foi ao chão. Corri no extinto de tentar fazer alguma e cheguei pouco depois que uma pessoa o segurava e pedia para que ele não morresse. A vitima aparentemente muito jovem de barbas ralas e algumas espinhas pelo rosto, trazia muito sangue salpicado por toda face, deitado com olhos pavorosos vidrados abertos para outra dimensão, seus membros inferiores se esticaram como se algo no interior insuflasse, deixando-


os estáticos pouco depois. Alguém disse “ele está morrendo”. Preferi não seguir a voz que dizia o óbvio, apenas olhei em minha volta, com os olhos queimando e uma dor estranha que não conseguia explicar o que era. Andei uns dez passos e olhei para traz, vendo aquele jovem deitado ali aumentando a lista de homicídios em nossa, ex-pacata, Montes Claros.



Os carros da Polícia chegavam a números bastante expressivos, o SAMU veio depois que muitos curiosos já estavam lá, para cumprirem seus desprezíveis papéis. No mesmo instante em que uma vida se despede, hospitais vão dando entrada em novas mães: pretas, brancas, ricas e pobres. Todas cumprindo seus trajetos de reporem os filhos exterminados pelas armas. Neste instante também ali mesmo na rodoviária, ônibus vão chegando para matar as saudades de pessoas que há muito tempo não se vêem, abraços apertados são trocados na chegada, como ali naquela pracinha, trocados pela saída do corpo aparentemente já sem vida. Voltei ao lugar em que deixamos a nossa satisfação e, vi que não teria mais como trazê-la de volta, ficando assim a imaginar a vulnerabilidade desta existência, quem era aquela pessoa, que pode ter vindo de tão longe, para cair ali na nossa frente? Morrer numa sexta-feira em que estávamos celebrando nossa vitória sobre mais uma semana dura de labor. O dia já havia partido, e grupos formados por ali comenta


vam suas versões, as luzes artificiais projetavam nas árvores, e estas por suas vezes, faziam dantescas figuras com suas sombras. Um carro desavisado passa com seu som em potência máxima, vira a rua e segue velozmente deixando os altos decibéis nos tímpanos atordoados. Pagamos à conta e fomos embora. O cansaço de antes agora aliviado pela sensação de estarmos vivos, até quando?



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