Leitura sem censura - Cachaça para inglês ver - por Adilson Cardoso

Jornal O Norte
Publicado em 29/04/2008 às 10:01.Atualizado em 15/11/2021 às 07:31.


Acaba de cair um mito, que há muito era sustentado no interior dos meus desatinos inconscientes. Como o pequeno Bob Generick, do Fantástico Mundo de Bob, eu imaginava Salinas como uma cidade decorada com palhas de cana, orelhões em forma de garrafas com nomes dos seus produtos estampados, pessoas educadas festejando os turistas com um caneco de Havana ou uma taça de Seleta, talvez Boazinha, Asa Branca, Meia Lua, Paladar, Monte Alto, Java e outras mais.



Nos meus pensamentos incluía-se também uma utópica cidade de garotos e garotas amparados pelo poder da publicidade da cachaça, vivendo numa pequena aldeia de primeiro mundo, esta  que embala no seu seio o grande artista, músico e cantor Doro do Brasamundo, que mora poucos metros da casa de um garoto de nove anos que passou mal em um evento de ação global, por início de desnutrição. 



Em Salinas não se vêem mendigos sujos, soltos no centro, porque os salinenses não tomam da pinga que é preparada para os estrangeiros, caso queira algum se deliciar do símbolo do lugar terá que desembolsar um real numa dose, para quem está na sarjeta arrastando um cobertor rasgado e um cheiro de perdido, isto é muito dinheiro, com essa quantia aqui em Moc se compra um litro de bufadeira e ainda tem direito de dormir nas sombras deliciosas do parque municipal.



Quando concluí minha tese de decepção sobre Salinas e sua cachaça, pensei então se fizéssemos a mesma coisa com o pequi, trouxéssemos para o grande mercado, fechando as portas no intuito de exportar, no  auge da safra, que a dúzia sai até a 30 centavos, continuasse a um real ou mais. Não teríamos aquecimento no comércio e diminuída queda na desnutrição. É certo que, pelo vigor da fruta, enfrentamos um levante literal da moral dos casais, mas isso é outra história.



A cidade que teve origem na descoberta das ricas jazidas de sal nas margens dos rios tornou-se município em 1880, desmembrando-se de Rio Pardo de Minas, também se destaca pelo requeijão e a carne de sol, em contraste com a realidade de alguns bairros considerados pobres, como a Vila Canaã, em que pessoas que sobrevivem dos bicos comem irregularmente, outros têm o que comer todos os dias, mas na terra da carne de sol, só de vez em quando enfeitam o arroz e feijão com um pedaço. A educação é outro fator que merecia um olhar mais apurado, crianças desinteressadas em aprender, outras agressivas, que carregam traços nítidos da convivência familiar, não têm o que fazer além daquele tempo que passa na escola.



Não se vêem projetos, não se vê o nome de nenhuma da marcas de cachaça tão famosas no país inteiro, em outdoors, apoiando alguma ação educativa ou até mesmo assistencialista. A escola municipal professora Áurea Paula de Souza trabalha com crianças de 1° a  4° série, acaba de ser assaltada, levaram coisas da dispensa e o único computador, por conta disso está tudo sendo feito a mão de diário de classe.



O ginásio poliesportivo teve seus cadeados arrombados e parte de uma entrada destruída. Diversas ruas de alguns bairros são quase intransitáveis, muito buraco, lama e falta de asfalto. Mas a natureza existe e cerca o lugar com as mais lindas montanhas, por todos os cantos em que se olha as serras estão lá de mãos dadas, como se estivesse numa mágica cantiga de roda, talvez mostrando àqueles que já enxergaram nesse prisma que denuncio que alguém esqueceu de vocês, mas nós estamos aqui.

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