Leitura sem censura: Bolsa escola - por Adilson Cardoso

Jornal O Norte
Publicado em 30/10/2008 às 09:49.Atualizado em 15/11/2021 às 07:48.

Adilson Cardoso


adilson.airon@mail.com



Todo mês era a mesma coisa. Naquele exato dia lá estava ela na fila da casa lotérica, mãos inquietas esperando os cem reais que o governo presenteia a quem mantém os filhos na escola. A felicidade era imensurável, as pequenas crias, que ainda chupam catarro quando não têm ninguém por perto, compravam balas, navegavam por horas e horas na internet da lan house, sorvetes e até os lanches do Merendão entravam na lista dos prazeres de uma centena de notas de um real.



Certo dia, o Fantástico mostrou crianças subnutridas no sertão da Bahia. Sol ardendo na cacunda das pobres desvalidas que comiam  calangos e lagartixas para enganar a fome. Lá, cem reais alimentariam toda a família e ainda sobrava para seu Zé comprar um litro de fubuia e se sentir poderoso. Porém, a amiga de Larissa não se importava nem um pouco de receber aquilo que talvez ela nem precisasse tanto.



E foram se passando os dias, até o grande Xamã, filho de Tupã, recorrer aos poderes de Luará, a sacerdotisa que ilumina as noites escuras dos viajantes que passam pela floresta. A partir daquele momento ficou decidido que todos os astros que se movem no universo conspirariam contra a bolsa-escola daquela que já foi apelidada por Posseidon de a peixinha doida.



Segundo a crença infinita, tudo só nos acontece quando o universo conspira a favor. Sendo assim, o Xamã olhou para os céus e sorriu a Luará, que será concebida no ventre do amor, e esperou o dia do pagamento.



Nesse dia, ela chegou com um carnê no bolso e passou seu cartão, digitou a senha e nada apareceu. Repetiu o processo com lágrimas nos olhos e uma imensa vontade de comer uma coxinha e tomar uma coca-cola gelada. Tomou foi um susto! Estava bloqueado.



No outro mês, a esperança unissex que mora na última vontade dos seres ainda se deixou levar por ela, mesmo sabendo que o Xamã  havia feito com a genitora dela. Falar aquilo que não podia para ser recadastrada no programa.



Numa segunda-feira de sol de outubro, ela chorou o desespero da perda. Pediu a Deus que ajudasse, mas ele nada pôde fazer. Quando o justo não é justo, a indignação quase lhe tira a sobriedade e ela por pouco não manda sua mãe calçar as botas de Roninha, que é o pior castigo no campo do existir. O chulé daquele calçado é tão forte que, quando tira no vestiário lá na Manutenção, os funcionários recebem ordem para procurar onde está o cano de esgoto estourado...



Assim não se conta mais com os cem reais. Nesse dia ela sonhou apaixonada com a notinha verde, e acordou se lembrando também que já houve vezes de duas de cinqüenta e até cinco de vinte. As lágrimas banharam seu rosto e o calor parecia aumentar. O barzinho que ela chama de venda toca uma saudosa canção de despedida e seu pranto dispara. Seus gritos enlouquecedores repetem que quer os cem reais!



Suas mãos  se atracam aos cabelos e leva a cabeça ao atrito com o muro próximo. Alguém invade o espaço curto e abre com força o portão, as roupas estilingadas não lhe implicam em pudor e os olhos vermelhos parecem possuídos pelo sobrenatural. Seus gritos continuam ecoando até o momento em que o Samu lhe veste a camisa de força e a deixa no Prontomente.



Na rua da casa, pessoas ainda sem conseguir entender como a pacata cidadã, que só briga quando bebe, pode ter surtado dessa forma, crentes oram, católicos benzem e até um amigo pai de santo fez um despacho na encruzilhada. Mas amanhã será um  outro dia, e os cem reais serão outros quinhentos...

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