Ladrão de saberes - por Eduardo Lima

Jornal O Norte
10/04/2007 às 09:18.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:01

Eduardo Lima

Seus saberes eu os roubo. Vejam que tomei um táxi, de um senhor Afonso, moço conservado e de olhar esperto. Trajeto curto e já de saída desaba uma chuva forte e rápida, destas que fazem subir um baforão da terra e levam de rodo coisas mortas. Bastou para que comentássemos sobre o tempo - todas as conversas em táxi se iniciam de maneira parecida: “Que calorão. O tempo ficou louco, hem?”. Basta isto para o papo seguir.

O Seu Afonso decretou sereno que o planeta está judiado e é culpa do homem. O tempo de agora, este que é frio e calor, sol e chuva é culpa da gente. Foi a busca do prazer, segundo Seu Afonso, que desnorteou o homem e fez o planeta ficar instável. A busca desenfreada pelo poder é outro contingente, mas o que na verdade o homem busca é usufruir do corpo, dar cabo de seus desejos mais efêmeros. E lá fomos nós nesta divagação fazendo um laço novo no nó de nossas vidas, contando um conto, botando um ponto.

E a seguir pude ler, ou reler – parecia familiar – num canto de jornal, uma reflexão de Mário Quintana: “A preguiça é mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda”. Lembrei-me de Seu Afonso, do táxi. De fato é a busca pelo conforto, que é prazer, que leva o homem a todas as invenções. Tudo é feito no sentido prático de burlar a natureza. Não no sentido do pecado, mas no sentido exato e objetivo da inventiva terrena autorizada, divina e santificada. É do ser humano buscar a comodidade, libertar-se da dor e do fazer força. Para isso se fizeram máquinas, engenhocas poderosas que elevam as pedras e as tornam tão leves a ponto de contrariar os fundamentos.

Este é o homem; prático, sustentável, indiferente à natureza, das coisas e à sua própria. Eis que Seu Afonso tem razão e assim serem indecifráveis os dias se o tema é clima; os homens irromperam sobre as árvores, as copas das árvores, a sombra das árvores. Os homens vadearam os rios e pisaram na lama dos leitos, sem dó. Inventaram umas máquinas frias e fortes e escavaram as montanhas e fizeram o vento tornar no curso.

Seu Afonso e Quintana se equivalem na minha insuficiência filosófica, no ardor que tenho de voar além do basicão dos livros e dos sábios. Com ambos aprendi coisas novas, mesmo diante do que possa ser repisado e obvio. À lição de Quintana, contudo, acrescento presunçoso, que a roda que o homem inventou, serviu não apenas à preguiça.

Foi a roda que inventou também as cidades imensas, o desejo imenso. Inventou uma imensa falta de escrúpulo, um imenso e limitado sonho de consumo. Inventou, e pois, o medo imenso e a distância imensa que nos separa. E eu que sou um ladrãozinho de conhecimentos pé de chinelo vou vivendo de pequenos furtos. E para o delito em pauta bastaram o tempo, um táxi, Seu Afonso e uma frase de Quintana. E deste modo me faço parecer sabido, às vezes. Viver de aprender é a lição.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por