Laços frágeis

Jornal O Norte
23/11/2009 às 09:44.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:17

João Caetano Canela

Doralice era mais desejável quando ria e, faceira, exibia os dois dentinhos frontais, levemente acavalados. Sem medo de ser feliz, Doralice declarava seu amor a mim.

Tínhamos, eu e Doralice, um tórrido amor de dentadas. Quero dizer, tínhamos não, que eu não mordia. Quem mordia era ela, com seus dois sensuais dentinhos.

Mas eis que Doralice, de um tempo em diante, deixou de me morder. Ora, se não sei nada a respeito das mulheres, ao menos sei quando se cansam de mim. E Doralice, a mordedora, se cansou de mim, conforme percebi.

Sofri com isso? Não. Eu também me cansara dela, daquele amor em estado de ebulição. E, quando ela disse que ia embora, não a detive, pois então o meu espírito e o da meiga Dulce já se precipitavam um para o outro ao nos vermos.

Ah, Dulce, dulcíssima Dulce, que, diferentemente de Doralice, não mordia. “Ou a mulher morde ou é fria” – sentenciava o nosso Nélson Rodrigues, imaginando saber tudo da abissal natureza feminina. Não sabia. Dulce, por exemplo, não mordia, mas longe estava da frigidez.

Tivemos um romance que se prometia duradouro. “Sempre hei de te amar” – dizia-me Dulce, com uma inflexão na voz ao pronunciar a palavra “sempre.” Mentia para mim? Não. Apenas se equivocava quanto à intensidade do sentimento que me destinava. O que é perdoável, pois quem não pensa que ama demais não ama o bastante. Dulce resolveu ir-se de minha vida e eu, que nunca acreditei na palavra “sempre” senão para a morte, deixei que ela se fosse, mesmo porque eu já me inclinava a achar, convenientemente, que ninguém é mesmo de ninguém neste mundo.

Sim, ninguém é de ninguém neste mundo, exceto Diana, que passou a me pertencer, no que Dulce se foi. Mas, num mundo em que ninguém é de ninguém, uma mulher realmente pertencerá a um homem? Bem, essa história de “pertencer” veio da própria Diana, a caçadora de corações, que ao entregar-se a mim o fez com estas palavras: “Enquanto o mundo for mundo, hei de lhe pertencer...”

Para encurtar a conversa: o mundo continua mundo e Diana, cuja declaração de amor estava longe de corresponder à força do sentimento que nutria por mim, deixou de ser minha.

Vá Diana, vá caçar outro coração, que eu agora estou preso aos misteriosos encantos de Vera Lúcia, cuja introspecção me impõe o desafio de conhecê-la além das vertiginosas curvas do seu belo corpo. Sim, preciso decifrar Vera Lúcia, que suspira pelos cantos. Só que ela, enigmática, não é de fácil acesso. O que me deixa inquieto, eu que sei que mulher – quando suspira - nunca suspira à-toa.

Dizem que certas mulheres costumam sonhar secretamente com amores impossíveis durante a primavera. Será o caso de Vera Lúcia? Bem, a estação primaveril se encontra do meio para o fim, felizmente. Mas e a estação seguinte, o verão?  Não estará Vera Lúcia sujeita a também sofrer influências perigosas por força do verão? Segundo o cronista Rubem Braga, que era atento à natureza feminina, algumas mulheres ficam severamente afetadas durante o verão, quando seus cabelos se mostram mais claros e às vezes os olhos também, tornando-se, ainda, suscetíveis de fantasias como imaginar que podem voar de uma nuvem para outra, ou miar como gatas, isto sem falar que tendem a se deixar raptar, por preguiça ou deleite...

A par disso, mantenho-me alerta, e vou sondando a tímida e profunda Vera Lúcia, a fim de desvendar-lhe o coração. “Meus suspiros são de amor por você” – eis o que ela afinal me faz saber, toda suspirosa.

Acredito. Mas, por via das dúvidas, já flerto com a adorável Alice, que me parece vinda do país das maravilhas.

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