Délio Pinheiro *
A infância de João Donato tinha cheiro de dama da noite. Era esse o cheiro que ele sentia quando sua mãe o chamava para jantar, nas tardes silentes de sua cidade de interior. E os aromas dos pratos feitos com algum capricho se misturavam com o aroma de noite fresca, trazidos pela dama da noite, cujos galhos roçavam-se na madeira rota do quarto do menino.
Mas havia outro cheiro que o acompanhava na infância, o cheiro de cachaça, que se desprendia da boca de seu pai todas as noites, quando ele chegava do bar. E havia também a promessa do cheiro de sangue, já que o pai batia na mãe todos os dias e só não batia em João Donato porque a mãe trancava a porta do menino com cadeado e guardava a chave em um lugar que só ela sabia. Mas a promessa do cheiro de sangue se derramando naquela casinha humilde aumentava cada vez mais, assim como o cheiro doce da dama da noite, cujo caule era o receptáculo da chave do cadeado que impedia que o pai molestasse o filho, como tantas vezes ele murmurava na porta do menino: “Eu vou te arrebentar seu viadinho”.
O pai imaginava que aquele menino aloirado não fosse seu filho, e mesmo os argumentos da mãe de que seu avô era das “Oropa” resolveu o problema. Para livrar o filho do ódio do marido, a mãe o prendia no único cômodo de tijolos daquela casa miserável. Principalmente a noite, quando o marido chegava da rua, fedendo à cachaça. Para o filho não ficar sem fazer nada, a mãe comprara um radinho de pilha para ele, e era ouvindo os programas de humor da noite, com o radinho colado no ouvido, que o menino tentava não se ater aos fatos que aconteciam naquela casa, enfurnado em sua misantropia forçada.
Sem que a mãe soubesse ele tinha uma peixeira debaixo do travesseiro para o caso das ameaças do pai se concretizassem algum dia. O menino tinha só dez anos quando aconteceu a desgraça.
Numa noite, silenciosa como todas as outras naquele subúrbio sem eletricidade, a pancada que o pai bêbado deu na mãe de João foi forte demais e ela desmaiou. Apenas de manhã, o pai do menino percebeu que a mulher havia morrido durante a noite. O pai chorou desesperadamente e chamou pelo filho para que ele o ajudasse com sua mãe, que estava passando mal.
Depois de vacilar por alguns instantes, João disse onde o pai poderia encontrar a chave do quarto: num prego fincado no caule da dama da noite. O pai praticamente se arrastou sob os galhos da planta e encontrou a chave. Depois abriu a porta e implorou que o filho o ajudasse. Mas quando o menino viu a mãe roxa e com hematomas no rosto, não teve dúvidas:
- Você a matou seu desgraçado!- o menino correu até o quarto.
O pai foi atrás dele e quando entrou no quarto escuro só sentiu a peixeira atravessar-lhe a barriga mole. O menino ainda deu mais três estocadas para se certificar e depois fugiu de casa, deixando para trás sua mãe amada, seu pai odiado e o cheiro inebriante da dama da noite, que continuou perfumando aquela casa, mesmo depois do enterro das duas vítimas do filho malvado, como a vizinhança, a polícia e os jornais passaram a considerar aquele caso. O menino, antes de partir, levou consigo seu radinho de pilha e fez um raminho com as flores da dama da noite. E depois ganhou a estrada, com o ramo da flor cheirosa em seu bolso surrado de estudante.
Depois de chegar à adolescência nas ruas do Recife, o menino se tornou um perigoso pistoleiro lá para as bandas do Maranhão e do Pará. A ele são atribuídas pelo menos dez mortes nos últimos anos. João Dama da Noite é sua alcunha de assassino.
Em sua ficha corrida de assassinatos não tem nenhum padre, nenhum pai de família honesto e nenhuma mulher honrada. Apenas políticos corruptos, posseiros de terra e assassinos se acabaram no ferro incandescente do matador.
Antes de fazer qualquer serviço, João analisa bem sua vítima e só aí, diz sim ou não para o contratante. Isso já é um hábito conhecido do matador. E os que solicitam o serviço sabem que, mesmo diante da recusa do assassino, não há com que se preocupar, já que a discrição é parte importante nesse tipo de trabalho, e João Dama da Noite conseguira o respeito de todos naquela região.
Mas tem outro hábito que ninguém sabe: João, depois de cada serviço feito, tateia cuidadosamente seu bolso de paletó, e encontra seu radinho de pilha, onde escuta as pregações de seu pastor, enquanto foge do flagrante. Depois ele remexe mais uma vez o outro bolso e encontra as flores ressecadas da Dama da Noite e dá uma cheirada cada vez mais profunda, em busca do cheiro perdido, da infância perdida e da vida, irremediavelmente perdida.
* Escritor serranopolitano
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