Januária e Brejo do Amparo

Jornal O Norte
Publicado em 20/05/2010 às 10:34.Atualizado em 15/11/2021 às 06:29.

Geraldo Jorge


Brejino dos Batata, filho de Geraldo e Chiquinha



“Pai, eles não sabem o que fazem...”



“Januária, terra amada, flor agreste da chapada, dos rincões do meu Brasil... Teus sombrosos juazeiros, teus coqueiros altaneiros abrem os braços ao céu de anil... As gaivotas murmurantes...”



As lágrimas não me deixam continuar a escrever os versos do hino da minha terra. Não é a distância que dela estou o que me machuca, mas sim o que fizeram e certamente ainda fazem com ela. Porque ela não é apenas minha, é dos meus pais, é dos meus parentes, é dos meus filhos, que nem lá nasceram, mas que compartilham e estendem naturalmente todo o amor que me vêem sentir.



Cadê os calçadões das casas e as ruas de pedras brutas cintilantes, suavemente ilustradas pelos carroções, cavalos, pelas boiadas e pelo caminhar de seu povo em alpercatas de couros durante mais de século? Onde esconderam os outros calçamentos de pedras talhadas e polidas, cortadas perfeitamente em retângulos por mãos de mulheres e homens de antigamente que as confeccionaram para formatar as mais belas passarelas que nossos pés ingênuos pisaram?



Digam para mim por que destruíram o guarda corpo de balcãozinho arredondado com pilares sinuosos no estilo gótico, que emoldurava toda a passagem do rio São Francisco pela cidade, beijando em ondas silenciosas a mais linda avenida de qualquer infância. Uma cidade lindamente plana de casinhas coloridas e ruas de calçamentos brilhantes pelo entrelaçar de sol e pedras quase azuis, em que todas as direções surpreendentemente presenteavam os olhos de uma criança com um rio que não tinha fim. Devolva-me o vapor movido a lenha com seus tufos de fumaça e seu apito trombonesco, e prolongado, ecoando cidade a fora e que era ouvido até no distrito de brejo do Amparo.



Ouvir a expressão “o vapor chegou” significava notícia boa nos olhos das pessoas. Porque nele chegava a vida acompanhada de coisas e gente com histórias novas, e depois as que viajariam levando a saudade mais os produtos de todas as espécies que chegavam e saíam revitalizando os mocambos, sem esquecer também das trupes de artistas regionais passeando e apresentando suas vibrantes novidades. O mundo viajava a vapor atracando na continental Januária.



Quero a antiga catedral de Nossa Senhora das Dores, com seus ladrilhos históricos, bem no centro da cidade. Seus altares entalhados na madeira e suas imagens esculpidas por artesãos no mais belo barroco e rococó de tempos passados. Preciso entrar na igreja da minha primeira comunhão, lá no Brejo do Amparo, porque é nela que restam os pingos da vela benta que ainda guardo enfeitada com laço caído em cetim branco. Ali aprendi a rezar.



Nos seus degraus de cedro do altar-mor vejo-me ajoelhado, ajudando a missa em latim com o padre Ramiro Leite. Doía o pescoço de tanto ficar olhando as pinturas desenhadas no teto da igreja de Nossa Senhora do Amparo. Resta, agora, na parede da casa de mãe, uma fotografia em preto e branco daquela igreja a me perguntar se ainda continuo usando roupa nova para ir à missa aos domingos. Respondo que somente ela merecia aquela deferência, porque sentia que a sua beleza era compartilhada comigo.



Sobram-me as lágrimas, quando agora ouço meus pais procurando suas histórias para me contar, porém seus braços encontram apenas a lembrança pendurada numa moldura, calando o restante da vida que deveria continuar existindo. Escuto baixinho uma voz que me diz: - Destruíram o nosso passado com nossas histórias, para construir o nosso silêncio.

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