Futebol: uma paixão na ponta dos pés

Jornal O Norte
Publicado em 07/06/2006 às 12:27.Atualizado em 15/11/2021 às 08:37.

Maria Margareth Lopes Dumont



Ano de Copa do Mundo e o Brasil com expectativa de hexacampeonato. Certamente o futebol será o grande assunto de 2006. E por acaso foi diferente nos outros anos que se arrastam entre uma Copa e outra? A Resposta é não, pelo menos no Brasil.



E de onde vem essa paixão?



Este texto propõe um entendimento sobre a trajetória desse esporte bretão, “canibalizado” em terras brasileiras. Um itinerário que se inicia no fim do séc. XIX e segue, por enquanto, até os campos da  Alemanha.



De prática de elite, o futebol tornou-se o esporte nacional por excelência, jogado com chuteiras douradas sobre gramados verdes impecáveis e também com pés descalços na lama suja.



Desde o final do séc. XIX, diversos clubes foram criados no Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais com o objetivo de estimular a prática de diferentes gêneros esportivos – como o críquete, o rúgbi ou o remo. Por terem tais esportes uma origem européia clara, essas associações eram em geral fundadas por estrangeiros residentes no Brasil ou pelos filhos das mais ricas famílias brasileiras. Como resultado, definia-se para tais clubes um perfil claramente elitista, que marcou os primeiros tempos da prática esportiva no país.



O carater inicialmente restrito do jogo no Brasil ficava patente pela ignorância generalizada a respeito de suas práticas e regras. Longe do destaque alcançado na posteridade, o jogo da bola não merecia, por parte da imprensa e do público, maiores atenções.



“Quando em 22 de setembro de 1901, um grupo de jovens cariocas promoveu uma disputa futebolística contra os sócios ingleses do Clube Rio Cricket (...). No dia do jogo, o cronista esportivo do “Correio da Manhã”, o único dos grandes jornais a se interessar pela partida, anunciava que seria disputada “pela primeira vez, no Rio de Janeiro, uma partida de foot-ball”. (...) o número de jogadores teria sido maior que o do público presente, formado por poucos amigos e parentes dos  jogadores e por 11 tenistas que estavam no clube por acaso”(PEREIRA, 2000).



Assim, só a partir dos primeiros anos do séc. XX surgiram, no Brasil, clubes dedicados especialmente ao novo jogo – caso do Fluminense Foot-ball Club (fundado em 1902 – RJ). Tais clubes pioneiros definiram um modelo que seria rapidamente apropriado por outros grupos de jovens elegantes interessados no jogo da bola. Com o rápido surgimento de novas associações, viabilizava-se em pouco tempo a organização das primeiras ligas e campeonatos.



*Acadêmica do 3º período do Curso de História do Instituto Superior de Educação de Montes Claros.          



Era o caso da Liga Metropolitana de Futebol, formada em 1905 no Rio de Janeiro, responsável pela organização de um campeonato carioca a ser disputado por times como o do Fluminense, do Botafogo e do América. A marca aristocrática desta liga, garantida pela alta mensalidade cobrada dos times filiados, fazia dos jogos por ela patrocinados verdadeiros eventos sociais, freqüentados pela mais distinta mocidade carioca.



“Como modo de garantir tal imagem refinada, a liga chegou mesmo a proibir, em 1907, a participação de jogadores negros nos campeonatos por ela organizados. Através de iniciativas como essa, firmava-se para o futebol, em seus primeiros anos no Brasil, uma marca elitista e excludente”(PEREIRA, 2000).



Esse não foi entretanto, o único caminho de difusão do jogo nas grandes cidades brasileiras. O futebol também passou a ser praticado, de forma mais ampla, por indivíduos que estavam longe de poder figurar como sócios desses clubes elegantes. Ele era jogado em terrenos baldios com bolas de borracha, laranjas e até mesmo embrulhos de papel. Nessas ocasiões, esses novos entusiastas do jogo da bola não aplicavam as elaboradas regras definidas em 1886 para o jogo pela Intenational Foot-ball Association Board, que pretendia orientar e uniformizar a prática do futebol nos países pelos quais ele se espalhava. Como resultado, apareceram várias associações, com mensalidades mais acessíveis que reuniam diversos trabalhadores de baixa renda, que muitas vezes tinham em comum apenas a região de moradia.



Em sentido semelhante, apareciam a cada ano clubes ligados a diferentes fábricas ou categorias profissionais.



“O modelo, nesse caso, era definido pelo Bangu Athletic Club. Fundado em 1904 por um grupo de técnicos ingleses da fábrica de tecidos existente no bairro, o grêmio chegou a figurar como um dos fundadores da elegante Liga Metropolitana. Por necessitarem de apoio da direção da fábrica, que via no futebol uma saudável alternativa de lazer disciplinado para seus funcionários, os dirigentes do clube se viam na necessidade de abri-lo para a participação de trabalhadores de baixa renda, o que alterava significativamente seu perfil. O clube acabou por constituir-se, dessa forma, como um espaço de celebração de uma identidade de ofício, capaz de irmanar os trabalhadores da fábrica através do esporte. A partir desse exemplo inicial, vários clubes se organizaram em outras fábricas, casas comerciais ou repartições – como o Carioca Foot-ball Club, fundado em 1907 pelos operários da Companhia de Tecelagem e Fiação Carioca” (PEREIRA, 2000) 



Iniciava-se, desse modo, um processo de popularização que acabaria por romper definitivamente as barreiras sociais que os membros da Liga Metropolitana tentavam construir para o jogo.



Ao aumentar a familiaridade de grupos diversos com o futebol, não era de se estranhar que esse processo resultasse no crescente incremento de interesse do público pelos jogos disputados pelos grandes clubes da cidade, que serviam de modelo aos demais – o que acabava por se refletir no aumento das partidas disputadas no campeonato organizado pela Liga.



Em paralelo à torcida pelos clubes principais da cidade, um outro tipo de evento esportivo se mostrava capaz de despertar, ainda com mais intensidade, o interesse desses novos adeptos do futebol: os jogos internacionais, realizados na capital federal a partir de 1908 – quando uma equipe de jogadores argentinos foi ao Rio de Janeiro enfrentar um combinado de jogadores brasileiros. Por mais que se tratasse ainda de definir para o time brasileiro o carater de uma seleção nacional, dado o limite regional, social e étnico dos jogadores escolhidos, o jogo despertou grande atenção.



“Há dois dias não se fala noutra coisa”, reconhecia o cronista Paulo Barreto, aparentemente surpreso com o sucesso alcançado por um simples evento esportivo. Mesmo a derrota do time brasileiro por 3 a 2 não parecia capaz de diminuir o entusiasmo de torcedores de diferentes classes e regiões, unidos na torcida pelo time nacional” (PEREIRA, 2000).



Ainda que nos anos seguintes os times brasileiros sofressem sucessivas derrotas em outros jogos internacionais realizados na cidade, estava definido um caminho que nos levaria ao mês de maio de 1919, quando se iniciava a disputa do Campeonato Sul-Americano. A formação de um time que reunia os melhores jogadores das principais ligas do Rio de Janeiro e de São Paulo fazia daquele um momento especial. Como resultado, os treinos realizados nas semanas que antecederam o campeonato, com um valor de ingresso mais acessível, atraíram  ao estádio do Fluminense, uma enorme e diversificada torcida, que chegou em algumas ocasiões a 15 mil pessoas.



O desenrolar do campeonato revelaria que esse otimismo não era infundado. Na estréia do selecionado internacional, no dia 11 de maio, a empolgação da torcida era recompensada com uma goleada de 6 a 0 sobre o Chile. No jogo seguinte, contra os já temidos argentinos, uma nova vitória por 3 a 1 levava o time brasileiro a uma grande final contra os uruguaios, o mais poderoso dos adversários do continente. Após um empate na primeira partida, foi marcado um novo encontro para decidir quem seria o campeão daquele ano. Estava assim armado o cenário que explicava o entusiasmo do público numa tarde chuvosa de 29 de maio de 1919.



No recém inaugurado Estádio do Fluminense, nas Laranjeiras, um selecionado brasileiro disputava com a poderosa seleção uruguaia seu primeiro título internacional.



“Nas arquibancadas e gerais, mais de 40 mil pessoas se espremiam desde as nove horas da manhã para garantir seu lugar. Do lado de fora um público de tamanho semelhante tentava obter ingresso para a partida, sendo contido pela força policial. Outros milhares de torcedores que não puderam comparecer ao estádio se amontoavam ainda na avenida Rio Branco, para acompanhar os boletins afixados em frente à redação do jornal O Paiz com informações sobre o desenrolar do jogo. Apesar do dia chuvoso, tratava-se da maior multidão já reunida na cidade para acompanhar um evento esportivo”(pereira, 2000).



Nas tribunas de honra do estádio, o presidente da República, Delfim Moreira, e outras autoridades acompanhavam pessoalmente a disputa.



Era no morro vizinho ao lugar, no entanto, que estava a maior surpresa: sem dinheiro para o ingresso, uma pequena multidão de aproximadamente 5 mil homens e mulheres de origens diversas se espremia para poder assistir de longe à grande final.



Evidenciava-se assim, pela primeira vez, o poder aglutinador do futebol em torno da nacionalidade.



De um modo nunca visto no Brasil, o jogo literalmente paralisava o Rio de Janeiro. Nas repartições públicas, por ordem do Presidente da República, Delfim Moreira, foi decretado o ponto facultativo. Os bancos não funcionaram naquele dia e grande parte do comércio fechou as portas às 12 horas para que seus funcionários pudessem acompanhar o jogo. Embora o jogo da bola estivesse ainda longe de poder ser caracterizado como um  esporte nacional, a mobilização causada pela final do  campeonato deixava claro que um novo fenômeno estava acontecendo na cidade: a febre do futebol.



Perto das duas horas da tarde, horário de início da partida, os elegantes jogadores brasileiros adentraram o gramado, com a então camisa branca do selecionado brasileiro, carregando flores para os adversários – na indicação do carater distinto que tais esportistas dos clubes da Liga pretendiam ainda imprimir ao futebol. Iniciada a disputa, no entanto, era o ardor patriótico da torcida que parecia prevalecer sobre a  boa educação dos jogadores. Tenso e truncado, o jogo terminou empatado em  zero a zero no tempo normal, o que levou a decisão para a prorrogação. Garantido o empate, o jogo continuou em outra prorrogação.



Era a vez do atacante paulista Friedenreich converte-se no herói do dia:



“Aproveitando-se de um cruzamento de Neco, que pegou a bola no meio do campo e partiu pela ponta direita driblando três adversários, coube a ele a glória de fazer o gol da vitória, que garantiu o título ao time brasileiro. Era a consagração definitiva do selecionado nacional. Enquanto no morro era desfraldada uma enorme bandeira, um mesmo grito - “Viva o Brasil!”- unia os torcedores ali colocados àqueles que acompanhavam o jogo de dentro do estádio. Igualados na imagem indistinta da multidão, todos se tornavam parte de uma mesma torcida, que teria então no sentimento nacional despertado pelo jogo seu grande elemento de identidade”(PEREIRA, 2000). 



Ainda que fosse branco e refinado o perfil do time que apresentava em campo as cores brasileiras, o sucesso obtido no campeonato mostrava-se assim capaz de sensibilizar os mais diferentes torcedores. Era o caso entre outros, de Pixinguinha – então um jovem músico negro que, entusiasmado pela vitória, e ciente do interesse despertado, compôs logo após o fim do campeonato o choro Um a Zero, no qual reproduzia os rápidos movimentos do jogo em um ritmo alegre.



Ao contrário do que pensam muitos dos que vêem no futebol um simples elemento de  disciplina e alienação, o entusiasmo da torcida não chegava a encobrir a existência de conflitos e tensões sociais mais profundos. É o que indicava o episódio ocorrido no momento da chegada ao Rio de Janeiro da delegação uruguaia. Única equipe do torneio que contava nos seus quadros com um jogador negro – o meio-campista Gradin, do Peñarol -, o time uruguaio foi recebido no Cais do Porto, como de costume, por uma refinada delegação de esportistas cariocas, encarregada de dar-lhes as  boas-vindas.



“Ao atravessarem o portão de saída, no entanto, os uruguaios foram surpreendidos pela original saudação de três marinheiros negros que passavam pelo local ao acaso. Apesar da rivalidade já presente em relação à delegação da seleção adversária, não hesitaram em bater palmas para os uruguaios, e gritaram para Gradin: “Aí Batuta!... Mostra ao branco que o pé de preto é branco” (PEREIRA, 2000).



Ainda que torcessem avidamente pelo selecionado brasileiro, esses marinheiros mostravam, com sua atitude, que nem por isso esqueciam outros antagonismos e fissuras quer marcavam essa identidade geral afirmada nos campos. Ficava claro que, ao mesmo tempo que se constituia como um elemento de expressão de identidade amplas e de  sentimentos nacionais arrigados, o futebol aparecia para tais torcedores como campo de reivindicação de seus direitos de cidadania. Não é por acaso que, anos depois, vários jogadores negros do Rio  e de São Paulo adotaram o nome do jogador uruguaio, em uma mostra do orgulho de sua identidade racial, que para eles não parecia em contradição com o sentimento nacional.



Da tensão entre essas diferentes formas de apropriação do jogo, configurava-se um esporte capaz de definir, para os diversos grupos sociais, uma linguagem comum de expressão. Transformado em meio de comunicação privilegiado entre parcelas antagônicas da sociedade brasileira, o futebol viabilizou a expressão, nos campos e nas arquibancadas, de inúmeras identidades e diferenças.



Resulta de tal história, uma certeza ainda hoje compartilhada por qualquer um que, de casa ou dos estádios, assista às disputas travadas pela seleção nacional: a de que, pelo menos para os torcedores brasileiros, futebol é coisa muito seria.



REFE. BIBLIOGRÁFICA: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda.



FOOTBALLMANIA: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.

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