Fé inabalável

Jornal O Norte
Publicado em 20/10/2010 às 08:46.Atualizado em 15/11/2021 às 06:41.

José Wilson Santos


zewilsonsantos@hotmail.com



O pardalzinho, ainda imberbe de penas, estatelou-se no chão de cimento do quintal e agonizava, quase sendo atropelado pelo pequeno Samuel, meu sobrinho de três anos e pouco, exímio piloto de velotrol.



O bichinho e sua agonia compadeceram Sam, que embora ainda não saiba, deu mostras da excelente pessoa grande que será no futuro, se conseguir fazer ouvido de mercador para os cantos das sereias que ecoam pelas esquinas da vida.



Sam desceu da motoca, pegou o pardalzinho com o cuidado de quem pega em bunda de santo e foi depositá-lo, sobre macio pano de chão que retirara da porta da cozinha, bem ao pé da mangueira, de onde o bichinho despencara. Ao lado da avezinha, colocou um pires com leite, cioso de que filhote, seja lá do que for, mama e gosta de leite.



Depois, quedou-se a uma distância prudente, acocorado, penso que à espera de que a mãe do pardalzinho aparecesse, o resgatasse e o levasse para o aconchego do ninho, aonde enfim vingaria, se tornaria um pardalzão e integraria o bando alegre que voa por todo canto, inclusive dentro de casa.



Mas não veio. A mãe não apareceu, em que pese os pardais continuarem esvoaçando, pra lá e pra cá, como se nada houvesse acontecido. Para tristeza de Sam, vieram formiguinhas pretas, em bando, e infestaram a avezinha, que se contorcia nos  estertores da morte.



O menino pegou balde com água, imergiu o pardalzinho e o banhou com sabão e os cuidados inerentes a uma criança de três anos e pouco, retirando as formigas. Depois, o embrulhou em pano, para secar, indo colocá-lo, com o inseparável pires de leite, sobre os pés da sua cama.



E não houve quem o tirasse de lá, ainda que a mana Viviane insistisse que a avezinha estava morta e era preciso enterrá-la. Sam adormeceu, vencido pelo sono, mas não deitado: vergou, mas não caiu. Adormeceu sentado no chão, com a cabeça apoiada no colchão, bem próxima do corpinho da ave, na última tentativa de protegê-la.



O pardalzinho foi parar na sacola de lixo, porque gente grande embrutece e não se compadece mais com a morte de filhotinhos, às vezes, mesmo quando o filhotinho é da sua própria espécie, tantas e tão amiúde as mortes de criancinhas são anunciadas nas tevês. Sam ainda procurou por ele no dia seguinte, só sossegando depois que a mãe garantiu que a pardal tinha aparecido e o levado de volta ao ninho. Volta e meia o menino pára sob a mangueira, a olhar os pardais, talvez tentando reconhecer em algum aquele que acha ter salvo.



Se não salvastes o pardalzinho, pequeno Sam, salvastes, embora sem o saber, a fé na educação de berço, que é meio caminho andado para pais e mães fazerem de suas crianças homens e mulheres íntegros, direitos e humanos na sua essência.



É, pois, o homem, aquilo que aprendeu na infância e teve reforçado na adolescência. Claro, não há regra sem exceção, mas o homem tende a ser aquilo que fizeram dele. Daí a fé inabalável do cronista, de que o pequeno Sam será um grande homem, porque só grandes homens se compadecem e se enternecem assim, feito ele, aos três anos e pouco.



Acho que devemos a homens como Sam será, ainda estarmos por aqui. Quando o Pai se cansa e pensa em dar um fim a isso, se depara com cenas assim, e assim vamos ganhando mais mil anos aqui, outros mil ali.



Beijão no coração, pequeno Sam.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por