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Domingo,15 de Setembro

Farmácia popular: avanço ou atraso?

Jornal O Norte
13/12/2005 às 11:30.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:55

Marcus Pestana *

O Governo Federal anuncia a implantação, nos próximos meses, do programa Farmácia Popular. Inspirado em programa semelhante existente em Pernambuco vem recebendo grau de prioridade máxima. Cabe registrar que a experiência pernambucana tem suas raízes históricas fincadas em ambiente institucional anterior à fundação do SUS pela Constituição de 1988. Até onde sabemos o patrocínio inicial da idéia está mais ligado aos profissionais da área de comunicação social, que a inseriram nos programas eleitorais de rádio e TV, do que propriamente aos sanitaristas e militantes do PT que, ao longo de décadas, pensaram e implementaram políticas públicas de saúde. A concepção básica é simples. Consiste na construção de uma rede nacional de farmácias populares onde seriam comercializados medicamentos produzidos pelos laboratórios oficiais a preços baixos ou subsidiados.

Gostaríamos de apresentar três argumentos centrais que parecem indicar que estamos prestes a cometer um grave equívoco.

Em primeiro lugar, os princípios constitucionais que norteiam o SUS são a universalidade, a integralidade e a equidade. Prevê a Constituição que o Estado tem o dever de assegurar o direito de todos os cidadãos ao acesso integral e gratuito a todos os serviços de saúde. Aí incluídos a atenção básica de qualidade, a assistência ambulatorial e hospitalar e o acesso a medicamentos.

- Daqui a pouco, estaremos oferecendo ou legitimando a realização de consultas especializadas ou cirurgias a preços subsidiados

É evidente que diante do quadro econômico estrutural e das graves restrições fiscais presentes, o acesso universal e integral gratuito se coloca como objetivo estratégico a nos desafiar, enquanto regulamos e organizamos a escassez. Seria impossível ao SUS ofertar gratuitamente as mais de 13 mil apresentações de remédios presentes no mercado. Por isso, o SUS organiza a política de assistência farmacêutica em três planos: 1) a  farmácia básica; 2) os medicamentos de alto custo; e 3) os programas estratégicos (AIDS, diabete, hipertensão). O caminho do avanço é o fortalecimento destes programas. O próprio SUS patrocinar uma cadeia de “lojas” para comercialização de medicamentos nos parece romper os princípios constitucionais da integralidade e da gratuidade, abrindo um perigoso precedente. A sabedoria popular mineira costuma dizer que “onde passa boi, passa boiada”. Daqui a pouco, estaremos oferecendo ou legitimando a realização de consultas especializadas ou cirurgias a preços subsidiados.

Em segundo lugar, a tendência é que quem irá se beneficiar majoritariamente das farmácias populares serão os setores médios da população. A segmentação do sistema coloca em xeque os princípios da universalidade e da equidade. Os modelos segmentados de saúde têm o falso suposto de que ao instituírem-se sistemas específicos para os que podem pagar, sobrariam mais recursos públicos para os mais pobres. As evidências empíricas internacionais mostram que ocorre exatamente o inverso. Um sistema focado exclusivamente nos mais pobres tenderá a ser sempre subfinanciado e a ofertar serviços de menor qualidade.

Por último, até mesmo como estratégia de intervenção regulatória do mercado privado, a partir da legítima preocupação com os preços elevados dos medicamentos, as farmácias populares parecem oferecer uma perspectiva equivocada. Não é uma rede estatal de “lojas do SUS” - com todos os seus custos administrativos e burocracia – que trará eficiência no combate aos preços abusivos dos medicamentos. Paralelamente ao fortalecimento das políticas públicas de assistência farmacêutica, o correto manejo de instrumentos tais como a política tributária e creditícia para o setor, a ação contra cartelização, o fortalecimento dos genéricos e o uso seletivo da quebra de patentes, pode certamente colher melhores resultados.

O importante é aprofundar a discussão. Se isto ocorrer, temos certeza que as lideranças do Governo Federal, que são inspiradas pelas melhores intenções, saberão reorientar o rumo. O que não podemos é precipitar e arriscar jogar fora, em uma única tacada, anos e anos de reflexão coletiva que deram sólidos fundamentos teóricos, políticos e ideológicos ao Sistema Único de Saúde.

* Secretário de estado de Saúde

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