Falácia

Jornal O Norte
30/12/2008 às 10:53.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:54

Anelito de Oliveira


Professor e Pesquisador da Unimontes    

O racismo contra negros no país é uma realidade responsável pela condenação de tantas vidas ao sofrimento, à exclusão, à miséria e à morte, tema que, por isso mesmo, merece permanente atenção. Contra a vontade daqueles - a maioria, infelizmente – que entendem que somos todos iguais, todos  filhos de Deus etc. Sem dúvida, esta é nossa grande e saudável utopia,  que devemos defender, claro, mas sem jamais esquecer que é utopia. Na prática, somos todos desiguais, inclusive perante a lei, e muitas vezes até com o incentivo da lei. E, se somos todos filhos de Deus, está mais do que provado que não há um único Deus pai de todos,  que uns são filhos de Deus mais que outros, por isso mesmo têm mais poderes, mais privilégios... Velha história, que há muito não nos leva a nada.

Atualmente, tem crescido uma onda de contestação das cotas para afrodescendentes em universidades públicas, sob o argumento batido de que são injustas, de que são igualmente racistas, e mais: de que são estímulo ao conflito entre etnias de origem “africana” e “européia” no Brasil, entre aqueles que se reconhecem como negros e aqueles que se reconhecem como brancos. Falácia. Mais uma falácia no país das falácias, que precisa ser combatida para que não vire verdade. As cotas deram - e continuam dando – oportunidade a um número expressivo de negros de fazer um curso superior nas racistas Universidades públicas brasileiras, especialmente nas Federais. As cotas estão tornando possível aquilo que foi sonho, apenas sonho, para inúmeras gerações de negros no Brasil. Esta é a verdade que tem que ser dita em alto e bom som.

Todavia, muitos não a ouvirão, já que até agora não a ouviram, sobretudo aqueles que estão bem sentados na ordem brasileira de hoje e sempre, os “homens de boa vontade”, todos fechados em sua verdade ideal, no topo da pirâmide social. Consideram-se não racistas, e, logo, não conseguem conceber e tampouco perceber o racismo em sua alta sofisticação, tal como se apresenta na sociedade brasileira. Para esses homens, geralmente movidos a religiosismo e liberalismo, há racismo contra negros, por exemplo, somente quando há agressão física ou verbal e, mais ainda, os meios de comunicação mostram em caráter de denúncia. Se os meios não mostram - e geralmente não mostram mesmo, por vários motivos -, então não há racismo, mas apenas alguma grosseria que alguém cometeu em algum lugar da cidade, no trânsito, no Mineirão etc.

Agressões físicas e verbais, embasadas no fator racial, permeiam a cotidianidade brasileira de ponta a ponta, e ignorá-las, ou tratá-las como “humanas”, típicas do convívio em sociedade, não passa de uma atitude covarde, uma covardia que consiste num mascaramento da realidade. Todas essas agressões, das mais leves às mais graves, são manifestações da essência racista da sociedade brasileira, a essência que define a superfície dessa sociedade, e nossa obrigação básica, a de todo brasileiro, é diagnosticar essa essência e contribuir, de alguma forma, para sua erradicação. Não é fácil, realmente, proceder a esse diagnóstico, nem mesmo para um negro: não são poucas as vítimas de racismo neste país - não raro, dentro da própria família - que não sabem que estão sendo vítimas, pessoas de todas as idades que não sabem de que crime, afinal, estão sendo acusadas, tampouco por que estão sendo condenadas.

Sem que o saibam, os “homens de boa vontade”, que insistem em acreditar no mito da “democracia racial”, são os que enunciam, com maior eficácia, a razão maior das cotas: o reconhecimento do racismo na sociedade brasileira, e mais: o reconhecimento do lugar decisivo que o racismo ocupa na organização social brasileira. Não se trata de qualquer reconhecimento, portanto, mas de um reconhecimento crítico, categórico, fundamentado. Motivo principal da Universidade, da importância de essa ação afirmativa – a reserva de vagas – visar a Universidade, não os campos de futebol ou os sambódromos, lugares que ainda estão abertos aos negros. As cotas significam possibilidade real de negros entrarem exatamente no lugar onde os mesmos “homens de boa vontade”, defensores da inexistência de racismo no Brasil, nunca quiseram que eles entrassem: a Universidade pública.

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