Era uma lata de sardinha, por Mirian Cavalcanti Prado

Jornal O Norte
Publicado em 29/12/2006 às 10:30.Atualizado em 15/11/2021 às 08:47.

- Serapião, vem vê quis trem é esse qui  as


criança acharu no lixão!!!




A voz estridente e o sotaque caipira, que vinham  lá do fundo do quintal, ao que tudo indicava, era a mulher que chamava pelo marido.



Ao ouvi-la, o companheiro ergue-se da cama de varas onde, alquebrado, descansa sob o mormaço das palhas que encobrem o barraco.



Entre paredes-meias, era onde o casal se amargava dividindo os dissabores de sonhos impossíveis e noites mal dormidas.



O companheiro atende ao chamado da esposa e pensa na possibilidade de algo diferente; que pudesse quebrar a rotina daquele subúrbio. Ali, nos arredores da cidade grande era onde aquele casal acomodara desde que juntara os trapos para, a partir de então, encarar com muita luta o nascimento de cada um dos filhos. Morar ali, tinha uma forte razão para aquela família, vez que; era próximo ao aterro sanitário, o único meio pelo qual lhe  era  retirada a sobrevivência.



 Era o típico lugar onde entravam anos e saiam anos, só a mesmice acontecia. Aliás, seria muito bem-vinda qualquer que fosse a novidade que por ali pintasse.



Curioso,  Serapião se dirige à mulher de baixa estatura e de feições miúdas e olha tudo em volta até fixar o olhar naquilo que ela traz nas mãos. Pelos olhares sintomáticos da esposa  e dos seus quatro filhos ali em volta, emudecidos, intui-se tratar de algo que dificilmente chegaria à  especificação.Afinal de contas, o desejo de todos era um só. Identificar aquele achado, dentro de uma lata outrora com sardinha.



O instinto materno que tomava às rédeas daquela coisa, no que não deixava de ser uma sublime missão, pensa na desnutrição dos filhos, quebra o silêncio e questiona verbalmente aquilo, sem obter respostas:   



“-Será se eles pode crescer e servir de comer como a sardinha que tinha aqui?”.Aponta para a latinha.


Rude, acreditava que todo e qualquer nadador poderia ser taxado de peixe. Uns peixinhos, por assim julgá-los, logo virariam peixões. Concluía.



Já o marido que há muito tirava o sustento da família reciclando materiais que achava no lixo, recordava das suas andanças onde diversas vezes viu daqueles sapecas pontinhos acastanhados em pequenos acúmulos da água límpida das chuvas. Só não sabia a que classe os pequenos pertenciam. A propósito, estabelecia dúvidas entre ser ou não ser, piabas ou girinos?


O certo é que aquele casal, carente de haveres e pouco recompensado com a função exercida pelo esposo, não possuía nada que os levasse a interagir com outros lugares e se informar a respeito de quaisquer outros assuntos; nem ao menos um velho rádio, poderoso veículo de comunicação. Daí, a mais completa ignorância.



Diante de tamanha isenção, teciam o desejo de que os pequenos nadadores crescessem tanto quanto as sardinhas para serem saboreados muito em breve pelas  raquíticas crianças.



Em meio às interrogações, os “bichinhos”, centro das atenções de todos daquela família, se mantinham ali, irrequietos numa mesma dimensão; aparentemente inofensivos.



 De sorte que estavam nas mãos de quem os desconheciam; que, por assim ignorá-los, fazia dos seus afagos a prova maior da boníssima intenção; no máximo enquanto atingissem o tamanho normal.


Aí sim. “Tornar-se-iam apetitosos  tira-gostos ou até mesmo poderiam render  alguns trocados.. ”Era o sonho maior naquele momento.


 Por vezes, mal acomodados no pequeno espaço, se amontoavam na escassez da água do pequeno recipiente, lembrando a quem  assim os vissem, as fossas bichadas dos esgotos.



As crianças, enquanto apreciavam aqueles desconhecidos desmembrados, iam sendo escaladas pelos pais a acrescerem o pequeno espaço da latinha, com um pouco mais de água, o improviso de cacos de telhas como tampas, recantos mais sombrios...



Mas, sem que percebessem, a revelação do mistério  por ali rondava. Já estava sendo denunciado pela própria natureza, bem próximo, acima de suas cabeças. Sobrevoava naquele momento, mosquitos de nome científico aedes aegypti. Os insetos, de aguçada percepção, perceberam ali larvas de sua oviposição  que se conservavam na fase aquática dentro dos 3 aos 10 dias.



Instintivamente os mosquitos vistoriavam a ousadia daquela gente que entremetia  na sua produção como se fossem generais no comando das suas divisões.



Sem nada perceberem, as crianças igualmente felizes, com seus pais, saem daquele local enganados com a verdadeira história da coisa. Visto a isso, guardaram a latinha recheada e bem protegida debaixo de frondosa árvore; pensando no retorno que, em breve tempo poderia acontecer. Além do mais, as brincadeiras  e a ingenuidade  que passavam aqueles bichinhos já afeiçoados pelos meninos, nutria  uma simpatia inigualável.



Ao deixarem o brinquedo e o lazer, pais e filhos se dirigem ao trabalho no lixão onde recolhem entre os imprestáveis algo mais; que a eles pudessem servir. Acresce que, comemoram o importante achado dali retirado, enquanto brincam de esconde-esconde detrás de testos úmidos de odores fétidos. Procuram outras coisas mais e encontram; mas, são também encontrados  por outros vetores em fase de dependência de seus  sangues que, ao sugarem, colocam na água seus ovos bem fortalecidos.



Com esses e outros procedimentos, tudo indicava que naquele extremo ermo da periferia haveria  focos da dengue. Veiculada a notícia, pelo número crescente dos mosquitos, não demorou muito para que a vigilância epidemiológica fizesse ali a sua vistoriação.



Pistas foram sendo checadas até que se chegasse àquelas adjacências. Foi constatado por radares o costume dos insetos voadores sobre seus focos. Observado o espaço  que girava num raio de 300 metros, abrangendo a região onde encontravam as larvas, mais especificamente o fundo daquele quintal onde estas se desenvolviam com tanta querência . 



Não foi difícil a vigilância chegar até lá. Entre outros, aquele  foco - o mais protegido e seguramente o mais amado daquele rincão-, foi desfeito. A latinha de sardinha foi arremessada pelos ares e amassada para nunca mais servir  de alojamento.



Foi  interrompido o ciclo que antecedia a chegada de uma nuvem de mosquitos que daria para desencadear uma epidemia da dengue. As larvas mantidas na água, como pensava aquela família, não eram peixes. Tinha em comum com os nadadores, apenas o fato de morrerem asfixiadas como um peixe fora d’água.



A família foi orientada sobre o perigo a que estava exposta. Enfim, aquela história teve  um feliz final para a população.



Foram poupados de um ataque, de grande número de mosquitos aedes aegypti atalhado enquanto larvas, naquela e em outras “infelizes”  latas de sardinha que certamente por ali havia.



Hoje mais bem esclarecida pela Vigilância do Combate a Dengue, aquela gente não mais acobertará “brinquedinhos assassinos”, nem desconhecidos no fundo das suas moradas. Afinal, cientes, não correrão mais um risco de morte como esse, tão fácil de ser precavido.



 A família passa bem e  ainda promete  requisitar uma vistoria sanitária quando reconhecer um inseto de péssima aparência; desleixado que desfila sempre com o mesmo traje;  mal talhado; rajado de escuro e de branco. Enfim, inconvenientemente mal vestido, deselegante aos moldes clássicos do figurino da sua raça vetoriana. Trata-se de visita inoportuna, atrevida e incômoda que inspira ataque, medo e fatalidade.






Mirian Cavalcanti Prado é escritora, consultora e pesquisadora temática



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